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terça-feira, 29 de abril de 2008

A rebelião e o vento

O texto abaixo é o resultado de uma tentativa de produção de um ensaio, solicitado pelo professor de Oficina Literária da Uneb, José Plínio de Oliveira. O referido professor revelou-me o talento, o trabalho e a heróica história do grande jacuipense Olney Alberto São Paulo, tão desconhecido em sua terra natal.
Tanto para mim quanto para minha esposa, que divide comigo o trabalho de ensaiar um conto da obra "A Antevéspera e o Canto do sol: contos e novelas," foi uma enorme alegria ver o resultado final. Certamente merece muito remendo, mas para dois iniciantes no estudo da literatura foi bastante recompensador.
Com os merecidos agradecimentos ao professor José Plínio, apresento abaixo o primeiro ensaio literário produzido por mim e por minha esposa Rita Janice.

Os Sertões de Riachão na ótica de Olney São Paulo

*Vital Martinho Carneiro de Oliveira

*Rita Janice Ferreira Guimarães Oliveira

Riachão do Jacuípe é um dos municípios que compõem a região sisaleira, região do semi-árido baiano. É também a terra natal do contista, jornalista e cineasta que fez da história do seu povo e de sua terra um roteiro de trabalho artístico-profético.

Os contos, roteiros e filmes de Alberto Olney São Paulo são marcados pelo jeito simples e sofrido do sertanejo inconformado com a injustiça que alimenta tal situação. Sob muitos aspectos, pode-se enfocar de forma bastante heróica e expressiva a obra de Olney. Neste breve ensaio, pretendemos nos ater à questão da miséria no campo e suas causas. O conto “A Rebelião e o vento” provoca uma forte interação autor/leitor quando aquele impõe a este, através da narrativa, uma reflexão sócio-política acerca da situação de miséria a que o povo sertanejo está submetido.

O conto começa com uma sutil denúncia das políticas agrárias implementadas para gerar – melhor seria dizer, concentrar – riqueza no sertão. Políticas oligárquicas, coronelistas.

“Outrora, onde a caatinga de porco, a malva-branca e a macambira se balançavam com o vento quente, vindo de um fim de mundo, surge agora o sisal, (feio, ponteagudo, de um verde esmaecido de esperança) em um montão de covas rasas, mais parecendo o cemitério do Sertão.”

As características apresentadas do lugar, dão uma certa idéia de desolação e de abandono. Tem-se a impressão de que a vida ali chegou de forma incompleta, sem a cor da esperança. Cor esta, aliás, cobrada nos parênteses abertos no texto.

O sisal, como salvação do nordeste, é apregoado euforicamente pelo Coronel Tibúrcio, único beneficiado pela tal salvação.

“É a salvação do nordeste! Agüenta tempo ruim e não precisa de chuva pra nascer. Daqui há mais uns anos estaremos ricos. Todos ricos!”

Para o Coronel, o único mal que existe na região é a escassez de chuva. Esta sim seria a única responsável pela miséria. Tal pensamento, no entanto, não é compartilhado pelos demais.

“Ricos, os ricos. Pobres e eternamente pobres, os pobres, pois deste é a desgraça de esperar três ou quatro anos até que chegue a safra do sisal. E a barriga? Fome não tem prazo de chegar, nem prazo de sair. Prazo de fome é barriga cheia.”

A tal salvação é restrita aos ricos, pois estes podem esperar o prazo da safra, enquanto que aos pobres é demasiado o prazo da fome. A desigualdade social, nem de longe, parece ao Coronel Tibúrcio, um problema de justiça social e muito menos algo que se lhe diz respeito. O valor da diária que o coronel paga aos lavradores é insuficiente para comprar um quilo de carne (que, aliás, é praticamente o indexador econômico determinante do valor da diária do lavrador macaqueiro[1], na região).

“O Coronel Tibúrcio paga cento e vinte mil réis por dia de serviço, lá na "Aroeira” e a carne de sol já anda em mais de cento e cinqüenta o quilo. O miserável do trabalhador tem que agüentar a vida toda, de sol a sol, destocando roçado, se quiser comprar a comida para os meninos. Ou então, o jeito mesmo é roubar.”

O Coronel Tibúrcio sabe que o sertanejo não pratica roubo. Nem isso o empobreceria, caso fosse vítima de um furto de uma ovelha. No entanto este não admite que tal fato lhe ocorra, talvez considerando ser antes, mais um desrespeito inadmissível que uma expropriação.

“E roubo é coisa que sertanejo não faz. Nem mesmo estando com a faca na garganta. Coronel Tibúrcio sabia disso, mas Coronel Tibúrcio é desgraçado, é ruim. O homem tem um lajedo no lugar do coração.

- Você me roubou, Pedro Macário. Você é ladrão!

- Não sou, coronel. Vosmicê sabe bem. Juro pelo Bom Jesus da Lapa. Ia lhe dizer. Ia lhe contar. Contar à comadre também.

- Depois do roubo? Não adiantava, compadre. Você pegou no alheio. Você é ladrão.”

De nada adianta ao Coronel, a argumentação de Pedro Macário de que a comadre do coronel, bem como o afilhado, Tonhinho, estavam com fome. O coronel continua acusando de roubo o pobre Pedro Macário que matara uma das muitas ovelhas velhas do coronel. Mesmo tendo, Pedro Macário, matado a ovelha na beirada do curral, como que numa atitude de quem assim o fazia por confiar na compreensão do coronel e que por isso não precisaria fazer às escondidas. E ainda o coronel sabia que aquela ovelha já tinha a carne velha e dura. O coronel não aceita as explicações do compadre e continua a discussão e a terrível acusação.

“- Ladrão! Ladrão! Ladrão!

(...)

- Era minha! Tinha o meu sinal: “um buraco de bala” e uma “forquilha” na orelha esquerda.

- Sua comadre, Coronel, os meninos... Tonhinho... os meninos Coronel, estavam com fome...

(...)

- Vosmecê não conhece fome, Coronel!

- Me pedisse. Lhe dava. Está parecendo o Chico Ventura? Você apanhou sem minha ordem, compadre. Roubou. É ladrão!”

A discussão faz Pedro Macário questionar, diante do infortúnio da tão dolorosa acusação, se quem paga cento e vinte mil réis por uma diária não seria ladrão, uma quantia insuficiente para comprar um quilo de carne.

Lembra do “tempo” em que sertanejo não levava desaforo pra casa. O Tempo de Lampião, cabra bom.

Lamenta a conformidade, a passividade do sertanejo diante da sua triste sorte, a falta de resistência à situação.

“Foi-se aquele tempo bom. Sertanejo, hoje, não tem mais sangue de sertão. Agora, o sertanejo, em vez de chuva e de forças, pede a Deus a morte e só pensa nos filhos se acabando de fome e de miséria.” (...) A fome continua, continua, quando se faz uma forcinha para acabar com ela, é cuspido no rosto e chamado de ladrão.”

Mesmo diante de tal situação, o único revolucionário de agora é um homem frágil, magro, feio e tuberculoso. Alguém que já não tem o que perder na vida. Um quase defunto ambulante. É este homem, Chico Ventura, quem faz vislumbrar aos olhos dos demais miseráveis o sonho de libertação. Provoca a reação e a cobrança por políticas que visem à erradicação da miséria, ao invés da salvação das lavouras dos coronéis latifundiários.

“- Por isso digo a vocês! Governo nenhum quer nada com sertanejo. A gente tem é que lutar. A gente é que tem que fazer a reforma agrária. REFORMA AGRÁRIA – dizia bem alto!”

Pedro Macário, a caminho de casa, continua refletindo a situação e as palavras do revolucionário vão aos poucos lapidando sua consciência. Já não dava total credibilidade ao juízo da igreja a respeito de Chico Ventura.

Às vezes, Pedro Macário matutava sem saber se Chico Ventura era mesmo o Santo Conselheiro ou se era o diabo em figura de gente, como dizia o vigário de Riachão.”

Chico Ventura, considerado o desgraçado do nordeste, era o único entre os famintos miseráveis, o que tinha razão. Pois Deus não deixou terra pra ninguém, não marcou rumo para o Coronel Tibúrcio nem para o Coronel Eulâmpio, pai do Coronel Tibúrcio. O mundo é bem grande e deve ser dos filhos de Deus.

Ao que parece, tais pensamentos e questionamentos foram amadurecendo e ganhando adesão. Quem sabe, uma profecia, feita em 1962 (quando o conto foi escrito), quando existia no país um grande anseio por uma reforma agrária, retardada até os dias atuais, tenha dado origem ao MST.

“A gente vai organizar um bando, Pedro! Não um bando de cangaceiros, como o de Lampião, nem um bando de jagunços. Mas, um bando de sertanejos fortes, um bando de homens, para exigir do governo, o meu, o seu, o direito de todos. Se não derem por bem, a gente recebe à força.”

Pedro Macário chega a imaginar como seria bom cada qual com seu pedaço de terra, plantando sem precisar pegar no alheio. Ele também ia ter seu pedaço de terra, plantar o seu sisal e desfibrá-lo com um farracho[2] bem grande, na malhada. A mulher e os meninos iam ajudar-lhe a ganhar a vida.

Ouve mais uma vez os planos do Ventura, uma reação contra a especulação do alimento mais acessível à mesa dos miseráveis.

“Amanhã será o grande dia, Pedro Macário. A turma toda está pronta pra invadir o armazém de do Coronel Tibúrcio. A gente vai ter comida de graça. A farinha que ele está guardando p’ra esperar a alta, vai encher a barriga desse mundão de gente aqui.”

A farinha faz Pedro Macário repensar as palavras do Ventura. O coronel não é tão ruim assim, na hora da raiva, solta o que tem na boca.

Lembra que apesar de toda a discussão e tão amarga acusação que sofrera do coronel, este ainda lhe deu a farinha para comer com a carne da ovelha roubada. A essa altura, sua mulher e seus filhos devem estar enchendo a barriga.

“- Farinha de primeira, seu Ventura. Farinha de mandioca, da boa!

- Mas seu povo está com fome, Pedro! A gente tem que invadir a “Aroeira”.

Vão só. O tempo do cangaço já passou.”

Ao chegar em casa, animado, antes mesmo de amarrar o cavalo ao mourão, Pedro quer compartilhar com a mulher e os filhos a ceia sonhada (a farinha de mandioca, da boa, que o coronel lhe tinha dado para comer com a carne da ovelha que havia matado sem a ordem do patrão). Tamanha é a ingenuidade, que não lhe ocorreu o dito popular: “quando a esmola é grande, o santo desconfia”.

Só após constatar que toda a sua família tinha morrido por causa do veneno que o coronel e a comadre colocaram na farinha, é que percebeu que a esmola era realmente grandiosa demais para ser oferecida por tão mesquinhas criaturas.

“Pedro compreendeu tudo: a bondade do Coronel Tibúrcio, o riso da comadre Eduvirgens, como quem dava esmola a retirantes.

- Está aqui compadre! Não faça mais aquilo não.

- Deus me livre comadre! Deus me livre!

- Deus o livre, compadre! Deus o livre!”

Meditando a falsidade do coronel e da comadre Eduvirgens, como o havia enganado a ponto de levar toda a sua família ao extermínio, Pedro Macário vê justificada toda a revolta do Conselheiro, como seus homens matavam os soldados como se mata um porco ou um carneiro, compreende a revolta de Lampião ao ver seus familiares, seus jagunços e companheiro de cangaço mortos. A revolta do Conselheiro e de Lampião, era também a sua. Por isso, tenta agir da mesma forma e vai vingar-se do compadre.

Porém antes que consiga concretizar sua ação, é definitivamente vencido pela esperteza sarcástica do coronel que sabe que pode contar com a cumplicidade do estado.

“Nem bem chegara à cancela da “Aroeira”, um tiro de espingarda, - algum caçador descuidado, como diria o Coronel Tibúrcio – jogara-o em cima das ponteagudas moitas de sisal.

- Pobre compadre! Assassinado em cima do ouro branco!

- Isto vai acabar vai acabar com a miséria do sertão, delegado! Nordestino, agora, vai deixar de dar ouvidos a esses desgraçados que só pensam em invadir nossas propriedades (...)

- Conseguidas, sabe Deus, como, hem coronel?!”

Embora tudo aparente que o caso está resolvido, o assassinato esclarecido, a ameaça inexistindo, o conto termina expressando a idéia de que mesmo fazendo-se de cegos e surdos diante dos reclamos dos miseráveis, existirá sempre algum tuberculoso, ou seja, alguém levantando a voz profética contra os opulentos.

“- Mentira, gritava bem alto, Chico Ventura.

E o vento tentava, inútil e insistentemente, sufocar sua voz.”

A Justiça não se dá por vencida e a esperança é a última que morre. Talvez, desejem os poderosos, que a esperança seja a única que morre. Dessa maneira não existiriam os rebelados e o seu legado, o tão terrível sonho de liberdade.


BIBLIOGRAFIA

SÃO PAULO, Alberto Olney. A Antevéspera e o Canto do sol: contos e novelas. Editora Fon-Fon e Seleta; Rio de Janeiro; 1969.




[1] Lavrador que vive de vender diária de serviço a um fazendeiro.

[2] Instrumento utilizado para desfibrar manualmente o sisal.



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