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domingo, 6 de abril de 2008

Confiar na própria honradez?

Com imensa alegria e gratidão publico, como já prometido, o texto do professor, escritor e teólogo José Lisboa Moreira de Oliveira, que presenteia os leitores deste blog com um artigo no qual discorre sobre a crescente idéia difusa por membros da religião católica de que esta detém as chaves do céu.

CONFIAR NA PRÓPRIA HONRADEZ?

Prof. Dr. José Lisboa Moreira de Oliveira Teólogo e escritor

Nos últimos tempos tem aumentado os casos de membros e de grupos da Igreja Católica Romana que desprezam, condenam e difamam as outras denominações religiosas e seus membros. Consideram-se superiores aos demais e se julgam donos da verdade e únicos detentores das chaves que abrem as portas da salvação. Na maioria dos casos, além de faltar com as regras elementares de civilidade e de respeito pela convivência pacífica, tais pessoas e grupos ferem os princípios básicos do cristianismo mais tradicional e se distanciam da prática de Jesus.

É possível afirmar e comprovar que o cristianismo, desde a sua origem, sempre acreditou e afirmou que os portadores de uma autêntica fé nem sempre estão entre os que se acham puros e perfeitos. Aliás, a história do cristianismo e das heresias revela que a Igreja, desde o início, nunca se considerou uma casta de perfeitos e nunca afirmou que os que se consideram perfeitos são os únicos a serem salvos. Pelo contrário, a comunidade cristã sempre se viu como assembléia de santos e de pecadores. E, se quisermos ir mais a fundo, olhando a prática e o ensinamento de Jesus, podemos afirmar com tranqüilidade que ele via, nos considerados pecadores, pessoas de muita fé e dignas da ternura e da misericórdia do Pai.

Olhando atentamente para as páginas do Segundo Testamento, vamos perceber que, para alguns textos, os paradigmas de verdadeiros discípulos e discípulas de Jesus não estão entre os que se declaravam ortodoxos, puros, dignos e santos, normalmente freqüentadores do templo e da religião oficial, que se autoproclamavam fiéis observantes da Lei e dos preceitos divinos. E esse detalhe não se encontra ali por acaso, mas para comunicar uma mensagem e uma verdade, para chamar a atenção das comunidades cristãs. Com certeza, nas comunidades para as quais os escritos neotestamentários foram destinados, já estava acontecendo essa tentação de pensar que os autênticos discípulos e discípulas de Jesus seriam somente os puros e observantes. Estes pretendiam impor o rigorismo da Lei como condição para se tornar cristão (cf. At 15,1-2). E os responsáveis pela redação dos textos sagrados querem reagir a essa imposição.

Além de proclamar que não se deve impor obstáculo à fé dos que parecem estar fora dos parâmetros dos observantes (cf. At 15,19), os escritos neotestamentários revelam que o Espírito de Deus age livremente naqueles que são de outras religiões (cf. At 10). Ele não precisa pedir permissão aos que se consideram únicos e verdadeiros praticantes. Os textos bíblicos chegam a afirmar que somente os “oriundos do farisaísmo” (At 15,5) insistem em impor condições, prescrever observações e normas, expedir excomunhões, baixar decretos com proibições e excluir quem não se encaixa dentro dos parâmetros estabelecidos. Dizem que quem age assim, considerando-se melhor, desconhece “que Deus é imparcial” (At 10,34) e que a graça de Jesus é livre de agir em quem quer e quando quer, sem fazer a menor diferença entre as pessoas, sem se importar com a situação delas (cf. Gl 2,6).

Os escritos neotestamentários são muito claros em afirmar que Deus é livre para conceder o seu Espírito inclusive a pessoas que não se enquadram nos esquemas pré-estabelecidos pela lógica do sistema da religião dos puritanos e observantes (cf. At 10,44-48). Portanto, negar que exista a real possibilidade de encontrar pessoas verdadeiramente santas, amadas e salvas pelo Pai de Jesus, fora das normas da religião padronizada e oficializada pelos que se julgam únicos detentores do sagrado, é, no mínimo, “tentar a Deus” (cf. At 15,10).

E se formos olhar para a pessoa e a atuação de Jesus, vamos perceber que também ele adota essa mesma posição. Quando a questão era a experiência profunda de fé, seus maiores elogios não foram para pessoas que se consideravam íntegras, como, por exemplo, os fariseus e doutores da lei, mas para os que não freqüentavam a religião dos templos e eram tidas como pecadoras e indignas de Deus. No centurião romano ele encontra uma fé inigualável, jamais encontrada em alguém de Israel (cf. Mt 8,10). O samaritano, tido pelos judeus como pertencente a uma raça impura, como herege e heterodoxo, com o qual não se deveria nem mesmo falar (cf. Jo 4,9), é apresentado como paradigma daquele que cumpre fielmente a Lei (cf. Lc 10,29-37). A mulher samaritana, com uma vida de relacionamento sexual fora dos padrões e normas da época (cf. Jo 4,18) é convidada por Jesus a ser catequista (cf. Jo 4,29), proclamadora do kerygma, daquele anúncio central e essencial da fé cristã que apresentava Cristo como “o Salvador do mundo” (Jo 4,42). A mulher sírio-fenícia, pagã, freqüentadora de outra religião, é apresentada como modelo de fé perseverante (cf. Mc 7,29). E uma prostituta é declarada exemplo de quem ama muito (cf. Lc 7,47).

Existem ainda dois outros textos que, a meu ver, são muitos mais significativos e incisivos para a questão que estamos analisando. O primeiro se encontra no Evangelho de Marcos (Mc 9,38-40). Fala do ciúme do apóstolo João que impediu a atuação de alguém que agia em nome de Jesus e não pertencia ao grupo dos Doze. Jesus não concorda com a atitude de João e o convida à tolerância, deixando bem claro que a sua pessoa e a sua mensagem não são monopólio de ninguém e de nenhuma igreja ou comunidade. Isso é afirmado pelo provérbio conclusivo: “Quem não está contra nós, está a nosso favor”. Portanto, menosprezar quem crê em Cristo, às vezes mais do que nós, e age em seu nome, só porque não é católico, é desprezar o próprio Jesus.

O outro texto encontra-se no Evangelho de Lucas (Lc 9,51-56). Jesus toma a decisão de ir a Jerusalém, onde será assassinado tanto pelo poder religioso como pelo poder romano. Ao passar pela Samaria, mandou pedir hospedagem em uma aldeia de samaritanos. Mas não foi recebido. Os discípulos Tiago e João ficam indignados e querem acabar com eles, utilizando o poder religioso de que dispõem. Lucas registra a repreensão severa de Jesus, que não aceita esse tipo de comportamento. Pode-se concluir, a partir desse texto, que, se somos seguidores de Jesus, não nos é permitido desprezar e condenar os que não são católicos romanos nem mesmo em situações de aberta hostilidade contra nós.

Infelizmente, quando nos escondemos por trás do menosprezo e da condenação dos que não são católicos romanos, podemos deixar de ser cristãos e católicos. Podemos deixar de ser cristãos pelas razões já apresentadas. Podemos deixar de ser católicos, porque a catolicidade é exatamente a abertura para a diversidade, para a universalidade, para a diferença. De fato, quando a expressão “creio na Igreja Católica” entrou nas primeiras profissões de fé ou credos cristãos, o termo “católico” (do grego “katholikós”) tinha esse sentido e essa finalidade. Era o momento em que as comunidades cristãs começavam a se abrir ao diálogo com as diversas culturas e suas religiões. Por isso tentavam valorizar os aspectos positivos que iam encontrando em cada cultura e em cada religião. Disso nasceu a convicção de que Deus Pai e o seu Logos (o seu Verbo, a sua Palavra, o seu Filho Jesus) já agiam nessas religiões e essa ação era salvadora e redentora. Os escritores cristãos daquele período chamavam isso de “semina Verbi” (latim), de “logos spermatikós” (grego), ou seja, de “sementes do Verbo” presentes nessas religiões. Deus já estava agindo por lá, como o seu Filho, antes mesmo do contato dessas religiões com os cristãos.

Esta convicção levou homens sensatos a reafirmar isso em tempos recentes. O papa João Paulo II, por exemplo, na encíclica Redemptoris missio (nn. 28-29), de 07 de dezembro de 1990, sem desconsiderar a importância da ação missionária da Igreja, afirma explicitamente que as “sementes do Verbo” estão presentes nas diversas iniciativas religiosas. Por meio do Espírito de Jesus, Deus Pai oferece a possibilidade de salvação a todas as pessoas, uma vez que esse Espírito está na origem de toda busca religiosa. As sementes do Verbo estão presentes nos ritos e nas culturas. O relacionamento da Igreja Católica Romana com as outras religiões encontra a sua justificativa neste princípio, pois o Cristo que se encarnou é o mesmo que age nas culturas e nas outras religiões. Nesse sentido o relacionamento não é de desprezo e de condenação, mas de respeito e de veneração por Cristo e pelo Espírito presentes nas outras religiões.

Três anos antes, através da encíclica Sollicitudo rei socialis, de 30 de dezembro de 1987, João Paulo II já tinha tocado nesse tema. Justificando o seu gesto de convidar os líderes das grandes religiões mundiais, para rezarem juntos pela paz na cidade de Assis (Itália), no dia 27 de outubro de 1986, o papa se fundamenta nesse princípio da presença das “sementes do Verbo” nas outras religiões. E ao convidar para a oração comum o papa afirma que cada líder rezará pela paz “na fidelidade à própria profissão religiosa”. Ele, pois, levava a sério a “fidelidade de homens e mulheres que acreditam”. Não ridicularizou e nem condenou, mas percebeu Deus presente em toda aquela multidão religiosa representada por suas lideranças.

Pode-se então concluir que a atitude dos que confiam “em sua própria honradez” e desprezam os demais (Lc 18,9) não combina com o seguimento de Jesus. O católico que se exalta e pensa ser superior a quem não é católico, não é justificado por Deus Pai (Lc 18,14). Não ser justificado é o mesmo que não ser perdoado, não ser salvo, pois “quem se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (Lc 18,14). De fato, nos garante ainda a Palavra, Deus “zomba dos zombadores, mas concede seu favor aos humildes” (Pv 3,34). Dito de outra maneira: “Deus resiste aos soberbos e dá sua graça aos humildes” (Tg 4,6).

O fato de ser católico romano não é garantia de salvação e de redenção. Somente a humildade, que leva ao reconhecimento da própria indignidade e coloca a salvação exclusivamente na misericórdia de Deus, pode nos salvar. É o que nos garante a parábola da oração no templo do fariseu e do coletor de impostos. Este, “de pé e à distância, nem sequer levantava os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem piedade deste pecador” (Lc 18,13). Jesus afirma que ele voltou para casa justificado, enquanto o fariseu, que se orgulhava de ser melhor do que o resto dos homens e mais perfeito do que o coletor de impostos (cf. Lc 18,11), não foi salvo porque se fechou no seu orgulho e na sua pretensão de ser superior aos demais. Podemos ainda continuar confiando na nossa própria honradez e desprezar os outros?


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