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segunda-feira, 30 de junho de 2008

Se meu travesseiro falasse...

Após um longo período sem postar nada, após os festejos juninos e de volta de Salavador onde passei alguns dias participando de um curso, volto a postar hoje um texto do meu antigo banco de dados. Não sei bem como qualificá-lo, talvez sirva apenas como complemento do meu perfil. Embora tenha sido escrito em 2004, os relatos servem ainda como referencial para a personalidade do autor.

(C0mo quase todos os textos do banco de dados do autor, este também foi produto de atividade estudantil do período da faculdade).




SE MEU TRAVESSEIRO FALASSE...

Tive muito trabalho para fazer amizade com quem descansa a cabeça todas as noites sobre mim. Não sei se fui eu ou a esposa dele quem conseguiu nos unir. Até os seus vinte e oito anos de idade, o sujeito de tão fechado a conversas que é, não tinha aceitado minha contribuição, talvez por medo de que eu lhe perguntasse alguma coisa sobre sua pessoa. Ele usava sempre o próprio braço para repousar a cabeça ao dormir e nas noites de angustiantes insônias, que a julgar pelo que ocorre hoje, não eram raras. Passavam a noite em conversas ou perturbações depressivas. Só depois que ele se casou foi que resolveu aceitar minha ajuda devido à insistência da sua esposa em aproximar-nos.
Atualmente somos grandes amigos. Parece até que sou seu único confidente, depois que ele descobriu que pode contar com meu silêncio. Percebo a grande dificuldade que ele tem para expressar o que sente. É um sujeito muito crítico e observador e segundo diz, poucos o entendem. Na verdade ele não é uma pessoa fácil de ser entendida.
Outro dia, conversamos sobre alguns fatos vividos por ele, dos quais lhe sobraram algumas perseguições pelo fato de ter emitido opiniões sinceras sobre a política de sua cidade e mais recentemente sobre a sua religião. Os políticos locais sempre o perseguiram, embora ele tenha suportado essa perseguição com mais tranqüilidade, pois sempre soube que não poderia esperar algo diferente de tão vis criaturas. Porém as últimas perseguições vindas da parte da igreja católica, para a qual trabalhava, realmente mexeram muito com ele. Acreditava, pois, que o padre apesar de humano também, fosse alguém mais preparado e capaz de praticar com desenvoltura a humildade e se preciso fosse, como para o caso em questão, praticasse ao menos caridade. Foi-lhe terrível a constatação de que para alguns padres, a humildade e a caridade são virtudes que devem ser praticadas sempre por outras pessoas.
Ultimamente tenho testemunhado sua angústia perante situações que enfrenta e, atualmente, pelo fato de estar desempregado, sua dificuldade em organizar suas idéias aumentou bastante. Nesses quase quatro anos em que começou a cursar a faculdade, realmente nunca o tinha visto com tantas dificuldades em realizar seus trabalhos acadêmicos. Já passam de três meses que ele vem quotidianamente repetindo que precisa fazer um trabalho para a disciplina de Didática. O trabalho consiste em comentar um maravilhoso livro intitulado “Se minha mesa falasse...”, autoria de Ricardo Spindola Mariz. A professora deixou livre a data da apresentação, a quantidade de laudas, a metodologia, etc., e esta liberdade ao invés de ocasionar tranqüilidade, ocasiona-lhe inquietação. É um sujeito que se considera sem muita criatividade – o título deste texto pode representar bem isso, caracterizando-se como um plágio – e é extremamente preocupado com seus deveres.
Diz-me sempre que tem dificuldades com a tal da sintaxe, e que as disciplinas da linguagem não lhe atraem muito devido ao fato de estarem extremamente condicionadas a regras convencionais da gramática – criadas, muitas vezes, para legitimar o falar eloqüente de uma elite privilegiada e quase sempre preconceituosa.
Pela sua trajetória de militância política em alguns movimentos sociais e principalmente dentro da Igreja Católica, certamente dar-lhe-iam melhores possibilidades as graduações de história, geografia, sociologia, filosofia e quem sabe até a psicologia.
O desafio de trabalhar com a disciplina “português” o preocupa, pois ele crê não estar nesta, o seu maior potencial. Lamenta o fato de a faculdade de Letras Vernáculas ter-lhe sido a única acessível até os dias atuais. A vida não lhe proporcionou outras possibilidades ou ele não soube provocá-las.
Diz-me sempre que vê a profissão de professor como um verdadeiro sacerdócio e que por isso é preciso exercê-la com extrema competência, responsabilidade e amor não só para com a disciplina simplesmente, mas, sobretudo, com o ser humano, ser inacabado e em permanente construção e crescimento.
Chega a ser-lhe perturbador o medo de mostrar-se incapaz de efetivamente dar conta de tão valiosa contribuição que, se mal exercida, pode causar enorme prejuízo ao indivíduo a quem se deveria estar ajudando com amor e gratuidade.
Percebo-lhe uma excessiva falta de autoconfiança e creio que também há um pouco de orgulho escondido neste medo de errar, apesar de reconhecer que nisto também há muito de timidez.
Não é muito chegado a debates com pessoas as quais não conhece realmente suas intenções ou não deixam claras suas ideologias.
Isto se agravou muito devido a uma experiência que viveu na faculdade quando um professor, consciente ou inconscientemente, buscou por diversas vezes desqualificá-lo na totalidade de suas intervenções durante suas aulas.
Quando eu, ou a consciência dele questionamos o porquê dele insistir em concluir o curso de Letras Vernáculas, ele responde meio confuso que além de não achar justo abandonar o curso depois de tanto sacrifício, tanto da sua parte como de outras pessoas que confiaram nele e o ajudaram com sacrifícios maiores, ainda resta-lhe a esperança de poder atuar como professor de literatura, o que julga ser a história com estética, e que até então só cursou uma pequena parte das disciplinas desta licenciatura.
Se eu pudesse falar, teria tanta coisa a dizer que uma só conversa não daria conta de esgotar esse meu desejo. Certamente eu ficaria confuso tanto quanto a pessoa da qual estou falando. Por isso acho que neste momento devo fazer uma pausa para retomar a conversa outro dia.
... (pausa) ...

(Retomada)
Olá, são passados exatos quinze dias daquela primeira conversa e acho que tenho fatos novos para contar. No intervalo de tempo entre a primeira conversa e essa que ora se inicia, pude conversar um pouco mais com o meu amigo. Pude fazer-lhe recordar do período entre seus cinco aos doze anos, quando ele acompanhava seu pai a todas as escolas públicas do município dando aulas de religião. Seu pai, pai ainda de outros 12 filhos, enfrentou um longo período de estiagem que obrigou sua esposa e seus filhos menores irem para a cidade, onde se podia encontrar água e trabalho com menos dificuldade. Ficando apenas com os três filhos mais velhos que ainda moravam com ele, sem os cuidados de uma mulher para cuidar da comida e da casa, a escassez de tempo e de mantimentos o submeteu a uma subnutrição que lhe causou uma tuberculose. Não podendo mais trabalhar na roça durante o longo período do tratamento, que naquela época era bem mais demorado que hoje, passado o maior risco de contágio e amenizando-se os preconceitos que acompanhavam aquela moléstia, o prefeito da cidade, sabedor do conhecimento que seu pai tem acerca de Bíblia e da Religião Católica, contrata-o para ensinar religião nas escolas públicas municipais e estaduais de Riachão do Jacuípe, indicado, creio, pela Divina Providência. Isto garantiu à sua família, a sobrevivência em meio àquela difícil situação, como também criou e alimentou no menino de então, um sonho do qual falarei adiante.
Devido à estiagem e ao problema de saúde, meu amigo ficou muito tempo sem a companhia do seu pai. Quando este começa então dar as aulas de religião, meu amigo tem a oportunidade de acompanhá-lo naquele trabalho e enquanto saboreia a sua presença, também começa a interessar-se não só pelas histórias bíblicas que ele contava aos alunos, como também deseja um dia substituí-lo na função de professor.
O tempo foi passando e meu amigo teve a oportunidade de conhecer melhor aquelas histórias bíblicas do ponto de vista não só religioso, mas também no seu aspecto, histórico-social-político-cultural na trajetória da humanidade. Percebeu que grandes conflitos mundiais de hoje, a exemplo do que ocorre no Oriente Médio entre Israelenses e Palestinos, tem sua gênese naquelas história bíblicas. Percebeu também a dimensão política da religião e posteriormente a dimensão religiosa da política.
Em 1998, meu amigo tem a oportunidade de participar de um curso teologia para leigos oferecido pela Arquidiocese de Feira de Santana. Antes mesmo de finalizar o curso que ocorria durante um final de semana por mês, no decurso de dois anos, logo após o segundo encontro desse curso, meu amigo obtendo o apoio incondicional e irrestrito do então pároco, Pe. José Silvino, cria uma extensão do curso da Arquidiocese na paróquia. Os assessores da extensão paroquial do curso seriam os mesmos leigos que com ele freqüentavam o curso da Arquidiocese.
Neste trabalho, ele viu realizado o sonho que cultivara quando acompanhava seu pai naquele tempo e trabalho já descrito. Durante quase sete anos, a Escola Paroquial de Leigos revolucionou a paróquia e os municípios de Riachão e Pé de Serra. Os questionamentos acerca da religião, cidadania, política, cultura e da história local modificou bastante o pensamento do povo sobre sua religiosidade, o que rendeu algumas campanhas difamatórias contra o pároco e a vários leigos, inclusive, ao meu amigo que ainda hoje sofre as conseqüências deste trabalho.
A juventude jacuipense foi bastante influenciada por aquele trabalho e tenta dar continuidade ao mesmo, apesar do retrocesso que se instalou na paróquia após a transferência do padre Silvino.
O retrocesso instalado desenfreadamente na paróquia resultou no aumento insuportável da hostilização dos líderes paroquiais para com meu amigo. Isso lhe deixou deprimido por não encontrar mais espaço para atuar. Sentindo-se inútil e exilado para um canto qualquer da igreja, ele começou a refletir e concluiu que é preciso abrir novos caminhos. Se a igreja não faz eco aos seus projetos de cidadania através da formação humana, social, política, histórica à luz do Evangelho é preciso buscar ou criar outros espaços.
Outro dia, Rubem Alves e Marcos Bagno, através de alguns de seus livros e de fragmentos de alguns destes, o encorajaram a fazer a experiência de ensinar redação e auxiliar a sua esposa com a disciplina “português”, num cursinho pré-vestibular popular criado por vários daqueles jovens que freqüentaram a Escola de Teologia para Leigos.
Esta experiência ainda é muito recente e não é possível ainda apresentar resultados, mas posso garantir que o entusiasmo de meu amigo está aos poucos ressuscitando. Oxalá, em breve, também a mesa dele possa ter algo a compartilhar comigo e assim eu não seja o único capaz de contar histórias a seu respeito. Quiçá, sua mesa ganhe alma e voz a partir desse novo desafio.


Travesseiro de Vital Martinho Carneiro de Oliveira, em 10 de setembro de 2004.

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