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sexta-feira, 28 de março de 2008

Em outro contexto, porém ainda pertinente

O texto a seguir originou-se de desabafo em forma de carta escrita a um amigo e companheiro de militância, depois foi transformado em artigo e publicado numa revista. Despertou, a meu favor, uma enorme admiração de um doutor em teologia, bem como a antipatia, desconfiança, medo e até perseguição em meu desfavor por parte de outros tantos sacerdotes e seminaristas.


Inserir o seminarista na convivência comungada do pobre:

(Um cristão leigo avalia a formação presbiteral)

Há muito desejo escrever sobre este assunto, mas sempre que me proponho a fazê-lo não consigo organizar as idéias de maneira que possam expressar o que realmente gostaria de dizer. Não sei se conseguirei agora. Sinto, porém, a necessidade de conversar com pessoas maduras e isentas de beatos preconceitos. Creio que na direção da revista "Espírito" encontro tais pessoas. E isso já é maior do que a consciência da minha inaptidão para tal empreitada.

Andei, antes, conversando com algumas pessoas, compartilhando angústias mútuas acerca da nossa religião e da nossa religiosidade. Sinto-me às vezes isolado, a anos-luz de distância da atual prática pastoral de nossa Igreja, seja no âmbito nacional, diocesano e paroquial. Não encontro espaço para expor o meu pensamento, o meu questionamento. Aliás, essa palavra questionamento nunca esteve tão em baixa cotação quanto agora. Todos os que "se metem a besta" e tomam tal atitude são ridicularizados e acabam reconhecendo-se no que diz Pe. Zezinho numa de suas canções: "não, eu não fui um bom cristão, pois fiz ao mundo concessão e, sem notar, de Deus me envergonhei".

Embora a "febre da religiosidade Marcelo Rossi" tenha baixado um pouco, percebemos que isto não foi conseqüência de alguma mediação receitada pêlos bispos, ou pêlos padres, mas sim porque toda virose epidêmica faz grandes estragos, mas acaba enfraquecendo-se. Especialmente quando a virose é ideologicamente vazia e barata.

Há muito tempo a Igreja não vem vacinando os seus fiéis contra a alienação ideológica que encontra na religião um excelente meio de propagar-se. Só uma imunização de conscientização sócio-política seria capaz de evitar tal doença social. Mesmo considerando-se as honrosas exceções, a maioria dos membros do clero, amparada pela inoperância de boa parte do episcopado, que pouco tem feito para que os membros do clero de suas igrejas particulares ponham em prática, com testemunho e anúncio, a Doutrina Social da Igreja, permanece completamente insensível diante dos graves problemas que massacram os excluídos e excluídas deste nosso país.

Como disse antes, o questionar está tão fora de moda que até as pessoas supostamente estudadas não o fazem, não por falta de desejo, mas por despreparo, uma vez que não foram exercitadas mentalmente. Parece que a formação teológica do clero ainda hoje não consegue capacitar seus candidatos para isso.

Sou consciente de que é mínimo, quase medíocre, o meu conhecimento de Doutrina Social da Igreja, de teologia ou de Bíblia, mas tenho sofrido muito cada vez que percebo que alguns padres que conheço demonstram compreender menos do que eu, apesar de terem estudado filosofia e teologia por sete anos.

Chego à conclusão de que a Igreja, bem como as congregações, não têm o direito de dar-se ao luxo de pagar todos os custos da formação do clero ou família religiosa, sem inserir os seus formandos no mundo do trabalho. Sem fazê-los, ao menos por um período de sua formação, "experienciar" as dificuldades pelas quais passam as pessoas normais, os pobres mortais que não têm nenhuma congregação ou diocese pagando todos os seus custos logísticos, alimentícios, como têm os vocacionados. Estes apenas estudam e nos finais de semana passam a se exibir, realizando palestrinhas nalguma paroquiazinha necessitada de pastores. Não raro as vocações sacerdotais e religiosas constituem um privilégio social para o vocacionado e não uma responsabilidade evangélica, cristã, social.

Não acredito que o fato de se exigir do seminarista, ou religioso em formação, que entrem na luta por emprego, como são obrigados a fazer milhões de trabalhadores brasileiros, possa lhe tornar menos preparado para o presbitério. É muito difícil encontrar quem perceba o valor do estudo, o peso da responsabilidade do pastor de tantas ovelhas indefesas (que não ousaria chamar de desgarradas, mas de abandonadas), se não se vivenciou a mesma situação. Assim como um dos sentidos do jejum, pregado pela Igreja, é fazer o penitente entender os que passam fome, acredito que inserir o vocacionado na "convivência comungada" dos pobres também teria um sentido teológico.

O fato de trabalhar, é claro, representa dificuldade para o estudante. Sobretudo o estudante de nível superior. Entretanto, minha experiência de estudante, trabalhador, pai de um bebê de alguns meses de vida, esposo de alguém que, como eu, também é estudante, trabalha e tem comigo este filho, tem comprovado, que o nosso desempenho, muitas vezes, é igual ou superior aos colegas menos ocupados de faculdade. Nossa experiência comprova que, quando realmente se deseja algo, não se vê os obstáculos como que maiores que o horizonte perseguido. Estou convicto que ninguém, mais do que eu e minha esposa, valoriza o curso que fazemos.

Não saberia explicar porque ouso exigir modificações tão drásticas na preparação dos religiosos e/ou candidatos ao clero. Mas é que percebo que muitos membros deste têm tanto menos compreensão dos documentos da Doutrina Social da Igreja, de Bíblia, menos maturidade, sensibilidade social, cidadã, evangélica, etc., quanto maior é o seu conhecimento das etiquetas sociais, do consumismo, da modernidade (carro possante, carro do ano, celular mais para ser exibido que para satisfazer sua real necessidade, etc.).

Creio que as casas religiosas e os seminários estão mais cheios de aproveitadores e/ou ignorantes do que realmente de vocações, de vocacionados. Diante da dificuldade de sobrevivência, de se estabelecer economicamente, ainda que em condições mínimas exigíveis para uma vida socialmente digna, o seminário e as casas religiosas acabam sendo uma excelente alternativa. Neste campo o mercado de trabalho é menos competitivo, têm-se mais acesso à formação que tornará alguém um profissional do altar mais que um pastor, dá mais status, segurança e estabilidade empregatícia. Assim, apenas uma parte do clero e dos religiosos fazem de sua consagração um seguimento radical do Cristo, enquanto outra parte bastante considerável torna-se simplesmente a nata da elite burguesa.

Creio que nem todos os que se consagram à vida religiosa têm vocação religiosa. Talvez muitos gostariam de ser apenas sacerdotes, não necessariamente religiosos.

É flagrante a falta de fraternidades nas relações de convívio entre os membros de uma mesma família religiosa, muitas vezes entre aqueles que moram na mesma comunidade ou pseudo-comunidade.

Embora este meu escrito não pretenda fazer nenhuma acusação a nenhuma pessoa, esta situação vem ocorrendo de forma muito evidente e em muitos lugares. Os simples participantes das celebrações, nas comunidades coordenadas por religiosos e/ou religiosas, percebem tal situação. Ainda que haja esforço, e com certeza há, dos membros da comunidade religiosa do local para não se deixar perceber tal situação, não há como esconder.

Outra coisa que questiono é a obrigatoriedade do celibato para os padres diocesanos. Apesar de ter apenas um ano e alguns meses de casado, posso testemunhar o quanto a comunhão de marido e mulher nos ajuda a ser mais humanos, mais sensíveis, mais responsáveis e preocupados com a sociedade, mais parecidos com Deus. Não quero com isso dizer que aqueles que não se casam não sejam capazes de desenvolver tais virtudes teologais. Como não reconhecer a meiguice, a sensibilidade, a doação á causa do Reino, em Dom Pedro Casaldáliga, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Angélico, Dom Hélder Câmara, Pe. Lisboa...? Aqueles que se dedicam realmente ao Senhor conseguem transformar sua afetividade em dedicação e entrega total ao Reino. Porém, infelizmente, na maioria dos presbíteros, tanto religiosos como seculares, o celibato parece torná-los pessoas secas, amargas, imaturas, frustradas, incapazes de tratar com equilíbrio, sem preconceitos, os temas considerados tabus: sexualidade, sexo, namoro, drogas, autoridade, etc.

A Igreja precisa, com urgência, rever muitas de suas práticas de formação dos presbíteros. Do contrário a qualidade da evangelização será bastante prejudicada e ela não terá condições suficientes de contribuir com o raiar de um novo tempo, neste início de milênio e de século.

Vital Martinho Carneiro de Oliveira

Leigo da Paróquia Nossa Senhora da Conceição

Riachão do Jacuípe • Bahia

(artigo publicado pela revista Espírito, Ano XXV, junho de 2001, Edição 85; p.24-27).

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