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sexta-feira, 20 de junho de 2008

"O evangelho que não liberta não é evangelho"

Para teólogo brasileiro, a Igreja Católica só cresce onde está vigente a Teologia da Libertação. Onde não vigora, entram as igrejas carismáticas e as seitas. "A Igreja perde fiéis por sua própria culpa, por ser muito autoritária, centralizada. Se a Igreja Católica não se abrir, seus seguidores diminuirão cada vez mais", prevê Boff. 

Raúl Gutiérrez - IPSSan Salvador (IPS) - Leonardo Boff, teólogo nascido no Brasil em 1938, chegou a El Salvador no Domingo de Páscoa, véspera do 28º aniversário do assassinato de dom Oscar Romero por um franco-atirador, em 24 de março de 1980, enquanto oficiava a missa. 


Boff participou das comemorações da data para testemunhar a “ressurreição” espiritual de Romero, conhecido pelos católicos salvadorenhos como “a voz dos sem-voz”. O ex-sacerdote franciscano considera “uma dívida que tinha com dom Romero” esta visita a San Salvador, de cuja diocese dom Romero era arcebispo.
“Oscar Romero morreu por causa de seu amor aos pobres. Ele inaugura um tipo de martírio pela justiça que nasce de um compromisso de fé. No fundo, imita o que Cristo fez”, afirmou. A oficial Comissão da Verdade concluiu em 1993 que o falecido major Roberto d’Abuisson ordenou seu assassinato. O Vaticano iniciou o processo de beatificação de Romero. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) responsabilizou, em 2000, o Estado salvadorenho pela “violação do direito à vida” de Romero e “pela falta de investigação” do crime.
Em outubro passado, o governo negou-se perante a CIDH a aceitar a responsabilidade e suas recomendações. Boff, um dos fundadores da Teologia da Libertação, foi alvo de várias sanções por parte da Igreja Católica nos anos 80 e 90 por causa de suas críticas, sintetizadas em “A igreja, carisma e poder”’, um dos 60 livros que escreveu, publicado em 1985.
O então diretor da Congregação pela Doutrina da Fé do Vaticano, Joseph Ratzinger, hoje papa Bento 16, lhe impôs várias dessas sanções, entre elas o silêncio forçado, pelo qual não podia oficiar missa nem se referir publicamente a questões doutrinárias. Finalmente, Boff deixou, em 1992, a ordem franciscana e dedicou-se totalmente ao ensino e a escrever.
Para este teólogo brasileiro, Romero se converteu em uma “referência não apenas da Igreja, mas de outro tipo de humanismo, de busca de diálogo, de saber estar ao lado dos mais vulneráreis, e isto implica resgatar a dignidade do ser humano e exigir mudanças que a garantam”. E isso “foi entendido como algo subversivo” e, portanto, “foi sacrificado”, afirmou. O que se segue é um breve diálogo que a IPS manteve com Boff em São Salvador.
IPS - Qual o senhor considera o primeiro obstáculo para não esclarecer o crime de dom Pomero?
Boff - A sociedade tem que limpar sua memória. Só assim se faz justiça. As relações humanas não podem ser construídas sobre a mentira e a impunidade. É fundamental que a mesma sociedade exija a identificação dos criminosos e a aplicação das leis. Sem isso, sempre haverá uma ferida aberta e cobranças de dignidade para o sangue derramado.

IPS - Os que estão no poder afirmam que isso seria reabrir as feridas do passado.

Boff - Essa é uma visão profundamente egoísta porque os que morreram continuam pertencendo à humanidade. A história humana é feita por mortos e por sua dignidade, por suas ações. É preciso resgatar a memória das vítimas, do contrário a sociedade perde sua densidade humana. Os mortos têm outra forma de vida e presença. Estão do outro lado da vida.

IPS - Dom Romero foi um bispo apreciado e querido em todo o mundo. Em várias catedrais européias, inclusive, foram erguidas estatuas em seu nome. Por que aqui, em El Salvador, ainda não se pode prender os culpados pelo crime?

Boff - Oscar Romero é um mártir singular. Morreu pela justiça, por seu amor pelos pobres. É um tipo de santo que não é freqüente na história da Igreja. Inaugura um tipo de martírio pela justiça que nasce de um compromisso de fé. No fundo, imita o que Cristo fez. Por isso, entendo que o poder religioso tenha dificuldade de ler esse sinal novo; não sabe como interpretá-lo.

IPS - Em décadas passadas, considerava-se que o vínculo entre a Igreja Católica e os povos latino-americanos era muito intenso, próximo e forte. Como o vê agora?

Boff - Quase a metade dos católicos vive na América Latina. Então, é, por si mesma, uma força. Mas a Igreja Católica também tem sua capacidade de recriação de um rosto novo, litúrgico, mais adaptado às culturas. Uma igreja que recolhe as memórias da sabedoria, das culturas antigas, indígenas e negras. É uma igreja que está nascendo ainda. Até agora era um apêndice, um reflexo da Igreja européia. Agora é cada vez mais e mais uma Igreja fonte e que está consolidando sua identidade própria.

IPS - Outras igrejas não-católicas ganharam terreno na América Latina. A Igreja Católica perdeu fiéis na região. Como explica esse fenômeno?

Boff - A Igreja perde fiéis por sua própria culpa, por ser muito autoritária, centralizada. Tem insuficiência de ministros porque não aceita que se casem, e isto é cada vez mais um elemento de crise interna permanente. Esta Igreja não se abre, como fizeram as outras. Inclusive o judaísmo abriu-se às mulheres. Se a Igreja Católica não se abrir, seus seguidores diminuirão cada vez mais. Apesar disso, a Igreja Católica tem irradiação desde as bases, centros bíblicos, pastorais sociais da terra, dos negros, dos indígenas, que é onde está sua vitalidade.

IPS - Há relação entre o fenômeno da fuga de fiéis e o movimento católico da Teologia da Libertação, que há três décadas era muito forte mas perdeu liderança e ficou acéfalo?

Boff - As investigações mostram que a Igreja cresce onde está vigente a Teologia da Libertação. Onde não vigora, entram as igrejas carismáticas e as seitas. Isto foi comprovado estatisticamente. Também é falso que a Teologia da Libertação tenha reduzido o número de fiéis da Igreja Católica. Creio que se tentou desmoralizar o tirar legitimidade da Teologia da Libertação, e, como conseqüência, se resignaram muitos cristãos que não entendem como o papa e os bispos podem estar do lado dos opressores, dos ricos, e não ao lado dos pobres.

IPS - Quais são os desafios da Teologia da Libertação para resgatar esse espírito, agora apagado?

Boff - No recente fórum mundial da Teologia da Libertação em Nairóbi, com representantes da Ásia, África, América Latina, Europa e Estados Unidos, vimos sua imensa vitalidade e crescimento. Mas, não é tão visível nem polêmica como antes. A Teologia da Libertação está presente ali onde as igrejas levam a sério os pobres e a justiça. O movimento nasceu da experiência de escutar os pobres, os indígenas, os negros e as mulheres marginalizadas, e está tão vigente como há décadas, porque os pobres ainda clamam a Deus para que os ouça. O evangelho que não liberta não é evangelho.

Não me importam muito as críticas dos pudentes deste mundo e da Igreja. Para mim importa que haja cristãos que levem a sério a questão da justiça. A Teologia da Libertação não fez dos pobres um objeto de reflexão. Caminhou com eles, sofreu as perseguições, calúnias, torturas e os assassinatos que eles sofreram. O teólogo tem um pé na miséria e outro na reflexão, e ao unir os dois chega-se à libertação.
Agora também deve-se atender o grito dos integrantes de gangues e dos jovens que não têm nenhum lugar na sociedade, os que sobram, sem políticas públicas que os contemplem: os drogados, os entregues à violência, os condenados da terra. Mas, também à Terra, às águas e florestas e os animais, ameaçados por uma cultura sem piedade nem sensibilidade e que pode levar a uma crise do sistema da vida com o desaparecimento de centenas de espécies.

Fonte: Agência Carta Maior


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