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segunda-feira, 6 de julho de 2009

Crise do atual modelo de Vida Religiosa

José Lisboa Moreira de Oliveira*


Há um bom tempo atrás uma irmã, leitora de “O Chamado”, me sugeria escrever alguma coisa sobre a Vida Religiosa Feminina. Mais recentemente uma jovem religiosa, muito inteligente e dinâmica, com formação universitária, também leitora de “O Chamado”, me escrevia perguntando o que estava acontecendo com a Vida Religiosa, uma vez que era grande o número de desistências. Com sua linguagem jovem a irmã assim se expressava: “Deu a louca geral, tem muita gente saindo, talvez mais que em outros anos. Olha, tá ficando cada vez mais difícil segurar-se nesse estilo de vida. Acho que aos poucos vamos morrendo. A falta de sentido, de ânimo, tanta das coisas. E pior: nem sempre é falta de vocação e dom pra vida religiosa. Mas quase ninguém quer refletir pra encontrar um caminho”.
Na fala desta jovem irmã temos alguns elementos gravíssimos: loucura, caducidade do estilo de vida, falta de sentido, falta de ânimo e, pior de tudo, a constatação, ao meu ver muito acertada, de que não é falta de vocação das pessoas, mas esgotamento e esclerose de um modelo que não consegue mais atrair ninguém. A irmã aponta um outro elemento muito grave: a recusa da reflexão. Não se quer encarar o problema de frente. Vai-se empurrando com a barriga... Nem pensar, nem refletir, simplesmente vegetar.
Para compreender isso é indispensável fazer uma rápida memória histórica da Vida Religiosa. Ela surge de maneira espontânea nos desertos da Síria e da Palestina por volta do terceiro milênio. Inconformados com a perda da radicalidade do cristianismo, cristãos e cristãs decidem espontaneamente migrar para o deserto e lá viver um estilo de vida simples, pobre e provocante. Pouco tempo depois começa uma tentativa de organização dessas pessoas através da atuação de Santo Antão. Mais tarde, Pacômio, um militar do exército imperial, dá início aos cenóbios, primeira forma de vida religiosa comunitária. Na Itália, São Bento organiza mosteiros. No Oriente, bispos como Atanásio e João Crisóstomo apóiam a vida monacal. Mas a iniciativa de Pacômio foi o começo da desgraça, uma vez que o ritmo “militar”, introduzido por ele, tirou a espontaneidade e a simplicidade desse modo de vida cristã. Poucos séculos depois os cenóbios eram transformados em mosteiros e a Vida Religiosa tinha perdido a sua naturalidade e espontaneidade.
No século IX a chamada reforma carolíngia eliminou todas as demais formas de vida consagrada, deixando apenas a vida comunitária monacal. Chega-se logo à Idade Média, período no qual os mosteiros se transformaram em verdadeiros antros de corrupção. Eram ricas propriedades e verdadeiros feudos, lugares de disputas políticas e econômicas das famílias ricas. Os filhos e as filhas eram obrigados pelos pais a irem para os mosteiros para garantir a hegemonia e a riqueza de suas famílias. Isso gerava os piores absurdos, uma vez que pessoas sem vocação não podiam viver bem e serenas naqueles ambientes. Nesse período tivemos várias tentativas de reformas, mas todas fracassaram, sendo engolidas pelo sistema. Basta lembrar, por exemplo, a reforma franciscana que já começou a fracassar quando o próprio São Francisco ainda estava vivo. Poucos séculos após a morte do Santo Seráfico os franciscanos chegam ao Brasil como senhores de escravos, donos de imensas propriedades, como, por exemplo, o Convento São Francisco em Salvador, na Bahia.
A situação caminha desta forma até o Concílio de Trento, o qual fechou todas as portas para uma Vida Religiosa mais simples e evangélica. As mulheres religiosas foram novamente trancadas nos mosteiros, sendo proibidas de saírem às ruas. No século XIX e início do século XX a situação ficou ainda mais difícil com a romanização da Igreja, ou seja, com a tentativa de fazer de todas as comunidades locais uma fotocópia da Igreja de Roma. Nesse meio tempo surgem congregações mais voltadas para a missão e o serviço aos pobres. Mas também elas foram engolidas pelo sistema, de modo que institutos nascidos para o serviço aos pobres, para a educação da juventude pobre, em pouco tempo se tornaram colégios para os filhos dos ricos. E continuam assim até hoje.
Na segunda metade do século passado, com a realização do Concílio Vaticano II, se dá uma nova tentativa de renovação. Mas, passados quarenta e quatro anos do término do Concílio, pode-se tranqüilamente afirmar que tal tentativa não passou de uma mera reforma de fachada, puro verniz colocado sobre tábuas podres. É certo que não faltaram grandes esforços, como aqueles da Conferência Latino-Americana de Religiosos (CLAR) e da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB). Mas tais esforços atingiram uma mínima parte das congregações e das pessoas. A maioria absoluta continuou e continua vivendo como se o Vaticano II não tivesse existido. Mais uma vez o sistema não permitiu o êxito das reformas.
Sei que essa análise institucional pode parecer fria e injusta. Choca muita gente, mas não há como fugir dela. As congregações e a própria Igreja continuam tentando enfeitar e camuflar certas coisas. É, no dizer de Donald Cozzens, a aplicação da pedagogia do “silêncio sagrado” que tenta esconder o óbvio, adotando a política da avestruz. Por essa razão esse modelo atual de Vida Religiosa, herança de dois milênios, não consegue responder às interpelações das novas gerações, em seus dinamismos, exigências e potencialidades. Não consegue dar respostas particularmente à filosofia de vida da pós-modernidade, marcada por muitas diferenças e diversidades. O momento cultural atual é de mudança de paradigmas, os quais revolucionam por completo o modo de viver das pessoas, a compreensão dos valores e a vida pessoal e comunitária. Assim sendo, como disse muito bem alguém, a vida religiosa atual se parece com o Titanic: gigante, monstruosa, rica e poderosa, mas frágil e debilitada a ponto de ser naufragada por um simples bloco de gelo.
A resposta para essa situação teria que ser criativa, e não apenas fiel. Mas a tarefa não tem sido fácil porque, como vimos, o atual estilo de Vida Religiosa ainda está amarrado aos velhos esquemas de um passado longínquo. Embora não faltem propostas de mudanças, como aquelas feitas recentemente pelo Prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada, “na prática a teoria é outra” (Lepargneur). A Vida Religiosa existente termina se afogando num intrincado novelo de conceitos e normas que ainda remontam à Idade Média, tempo em que se discutia “o sexo dos anjos”. Por essa razão estou plenamente convencido de que o atual modelo de Vida Religiosa está esgotado e completamente esclerosado. Não serve para as “novas gerações”. Porém, a meu ver, será muito difícil vislumbrar um novo horizonte, pois um falso apelo à prudência e à tradição está atrasando o processo e impedindo a Vida Religiosa de viver evangelicamente. Nos últimos anos falou-se de tanta coisa, inclusive de “refundação”, mas a atual Vida Religiosa, na sua concretude, não passa de uma pobre velha esclerosada incapaz de fazer memória corajosa do seu passado e de realizar uma reviravolta.
Um olhar simples e discreto comprova o que estou dizendo. Há um acelerado processo de envelhecimento das congregações e diminuição assustadora de vocações. Por outro lado, a insistência em manter modelos arcaicos e esclerosados não permite que as “novas gerações” sejam atraídas. Os homens e as mulheres de hoje até admiram a Vida Religiosa, mas como peça de museu. Valiosa como relíquia, mas sem nenhum significado para a realidade existencial de quem está na luta pela sobrevivência. Alguns até se empolgam ao ver que em determinados institutos há entrada de novos membros. Mas se esquecem de perceber aquilo que gente experiente como Libanio já observa a um bom tempo. Essas congregações se parecem com ônibus circulares: tem sempre gente entrando, mas também sempre gente saindo. E a fala da jovem irmã, colocada no início deste texto, confirma o que estamos dizendo.
Vem, então, a pergunta: não há como reverter o quadro? Não há esperança? Há, sim. Desde que a Igreja e as congregações sejam capazes de se darem conta dessa tremenda esquizofrenia, e, com coragem, busquem uma verdadeira cura para esse mal. Mas o grande problema, como dizia no início a jovem irmã, é que quase ninguém quer refletir sobre isso. E, pior ainda, não quer partir para mudanças, uma vez que elas incomodam e desinstalam. As congregações precisam se dar conta de que as novas vocações virão das novas gerações. Não adianta ficar sonhando com um tipo de vocacionado ou vocacionada inexistente. Todavia, sem mexer no atual estilo completamente ultrapassado e sem mais nenhum sentido para quem vive no século XXI, será impossível atrair novos membros.
Por essa razão sou levado a dizer que o futuro de boa parte dos atuais institutos de Vida Religiosa será aquele dos 76% das congregações fundadas desde o início da Vida Religiosa até 1500: morte e desaparecimento. Raymond Hostie, em sua pesquisa publicada há muitos anos atrás no livro Vie et mort des ordres religieux (Paris: Desclée, 1972), já constatava que a “causa mortis” dessas ordens religiosas foi a incapacidade de ler os sinais dos tempos e de fazer no momento certo as mudanças necessárias. Hoje, infelizmente, muitas congregações religiosas terão apenas que aprender a arte de morrer bem. Nada mais.
Portanto, há esperança. Mas tudo vai depender da coragem e da capacidade das congregações de ouvirem as interpelações e captarem os sinais dos tempos. Não duvido de que muitas congregações ainda permanecerão por muito tempo, mas como verdadeiras empresas que administram fortunas sem muita ética e sem nenhum senso de justiça social. Outras sobreviverão como microempresas ou empresas de fundo de quintal, administrando fortunas menores. Tanto nas primeiras como nas segundas não faltam constantes histórias de desvios de dinheiro, de roubos, de caixa dois, etc. Mas, para o Evangelho, isso conta pouco, pois o que importa mesmo é ser apenas “pequenina semente” (Mc 4,31-32), pitada de sal (Mt 5,13) ou porção ínfima de fermento (Lc 13,21). Nisso está o sinal escatológico do Reino e não nas fortunas e no poderio econômico.
Poderá uma congregação religiosa ser este sinal quando, por exemplo, ela paga muito mal os seus funcionários, enquanto os seus membros passeiam pelos shoppings e compram o supérfluo? Quando uma única compra individual feita por um religioso num shopping supera o salário de um simples funcionário? Pode ser sinal a congregação cujos membros se dão o luxo de tomar um avião para passar um fim de semana num hotel à beira de uma praia famosa, enquanto o seu funcionário não pode comprar o remédio para o filho doente? Pode uma congregação ser sinal quando os seus funcionários andam de ônibus e a diretora do colégio, como verdadeira madame, tem motorista particular que vai deixá-la e buscá-la nos vários lugares? E as perguntas poderiam se multiplicar!
Infelizmente muitos religiosos e muitas religiosas se contentam em procurar um “bode expiatório” para essa situação. Muitos não param de jogar a culpa nos tempos atuais e na juventude de hoje, que, segundo eles, não quer nada. Mas, a meu ver, o problema não está nos jovens e sim nas instituições esclerosadas e carcomidas. Pode ser que o grande futuro e a grande esperança seja exatamente a morte e o desaparecimento desse modelo. Afinal de contas a Vida Religiosa não é indispensável para o seguimento de Jesus. E, como no dilúvio, Deus pode fazer “novas todas as coisas” (Ap 21,5) a partir da destruição total do velho, do caduco, do corrompido (Gn 6,5 – 9,27). Oxalá isso aconteça com a Vida Religiosa atual!

* José Lisboa Moreira de Oliveira, licenciado em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília, graduado em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, Mestre em Teologia pela Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional (Nápoles – Itália), Doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma. Autor de 13 livros e dezenas de artigos sobre o tema da vocação e da animação vocacional. Foi assessor do Setor Vocações e Ministérios da CNBB (1999-2003) e Presidente do Instituto de Pastoral Vocacional (2002-2006). Atualmente é gestor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília, onde também é professor de Antropologia da Religião e Ética.

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