
Jornalista Ernesto Marques.
No
primeiro dia de motim, estava em Ilhéus, e lá vi, bem de perto, a
tática do pânico se espalhar. Fiquei, como muita gente, indignado.
Absolutamente solidário à pauta legítima dos policiais, não poderia
concordar com intransigência em mesa de negociação e muito menos com a
substituição dos argumentos pelas armas. Escrevi, seguindo recomendação
de Ordep Serra, porque era inevitável. Mas antes de publicar, parei,
pedi opiniões e resolvi manter profundidade de periscópio antes de
opinar sobre assunto tão delicado, enquanto observo a evolução dos
acontecimentos e o debate nas redes sociais. Num belíssimo começo de
manhã de domingo, arrumada a casa, depois de três dias em viagem de
trabalho, sirvo-me dessa Luz na escolha das palavras. Caminho em terreno
minado. Muito menos adjetivo que o irado texto original, mas ainda mais
incisivo ao botar o dedo em algumas feridas pelo visto ainda não
cicatrizadas.
Para começo de conversa, vamos deixar de lado um
certo saudosismo tolo porque nem aqui, nem em lugar algum há mais lugar
para ditadores de província. A história pode e deve inspirar a
literatura, como jornalismo ou como ficção, em seus mais variados
gêneros e formatos. Mas como ciência humana, está ai para nos oferecer a
oportunidade de reflexão sobre nossa caminhada civilizatória. Já
apanhamos bastante – e no sentido literal, apanhamos dessa PM – para nos
sentirmos capazes de fazer as instituições funcionarem minimamente por
aqui. A sociedade baiana pode, tranquilamente, abandonar a idéia do
chicote como régua para medir o tamanho dos seus líderes. Não se trata
aqui de defender o governador em mandato, nem de acusar quem já partiu.
Trata-se de abjurar a idéia folclorizada e superada de um painho que nos
resolva os problemas. O de agora não será resolvido a murros na mesa,
mas é risível qualquer tentativa de desconectá-lo dos fatos de 2001 e
1991.
A sublevação do presente decorre da falência daquele
método mediocrizante, prova de que autoridade não se constitui sobre
autoritarismo. Anos depois da ruína do “império”, a Bahia tem que
enfrentar os muitos esqueletos do armário da Segurança Pública. Melhor
fazê-lo com a seriedade exigida pelo tema.
As circunstâncias do
movimento liderado pela celebridade instantânea do momento, Marco
Prisco, levam a um curioso encontro entre anarquistas, militantes
esquerdistas e a autêntica burguesia conservadora da Província da Bahia.
Somente posso supor desinformação neste último segmento, movido muito
mais por seus interesses de classe, embora a eles se somem os alegres
emergentes, inebriados com a sensação de pertencer ao topo. Falo de
pessoas que têm computador em casa com banda (mais ou menos!) larga e
animam redes sociais. As razões do encontro estão muito mais na
oportunidade dos fatos, do que na coincidência de uma posição política.
O
debate sério e potencialmente produtivo sobre segurança pública
recomenda, na mesma medida, contundência e ponderação. A contaminação
ameaça tirar-nos a chance de tratar o assunto em profundidade de forma a
livrar a sociedade da hipótese bizarra reviver, daqui mais uns dez anos
os fatos de hoje.
Gostaria de ter certeza de que o Estado,
representado pelo Ministério Público, terá boas e irrefutáveis provas,
coletadas em regular inquérito policial, sobre a autoria dos fatos de
autêntico banditismo testemunhados por todos. Porque respeitado o devido
processo legal, assegurado amplo e irrestrito direito de defesa, lugar
de bandido é na cadeia. Mas... O líder da Aspra nega qualquer
participação naquilo, e, em seu favor, o benefício da dúvida. Só não
pode eximir-se da responsabilidade de outros fatos, não menos graves.
A
sede do Legislativo foi militarmente ocupada. O movimento tem uma
hierarquia e o seu comandante desfila pelo Palácio Luis Eduardo
Magalhães vestido em colete balístico, escoltado por guarda pessoal
armada até os dentes. Como “vitória” do movimento, ele tende a
nacionalizar-se, a começar pelo Rio de Janeiro. Num banquete dantesco,
incrível ver tanta gente a fim de uns peixinhos fritos no mar em chamas.
Quando
um policial recebe seu distintivo e sua arma, já passou por formação
específica e antes disso por um concurso. Antes do concurso, certamente
sabia dos riscos e das condições reais da carreira policial. Distintivo e
arma. Distintivo...
Algo que distingue, que destaca, que
simboliza a autoridade conferida a quem fez e faz por merecer confiança –
no caso, a confiança de usar uma arma letal em nome da sociedade e em
sua defesa. Tanto maior a adesão e a duração do motim, maior será a
ferida deixada no modelo de aparelho de segurança pública vigente. Não
tenho convicção formada, mas a quebra da hierarquia e da disciplina,
base da doutrina militar, coloca a necessidade imperiosa de discutir
esse modelo em profundidade. Chegou a hora de desmilitarizar a segurança
pública? Se um dia foi garantia de estabilidade, justamente por causa
da rigidez de conduta afiançada pela doutrina, o movimento liderado por
Prisco escancara as vísceras do sistema e dá voz a quem defende o fim
das PMs.
O movimento armado de agora tem que ser o último. A
sociedade não pode armar quem seja capaz de decidir romper o juramento
feito quando bem entender e deixar as ruas de ponta a cabeça. Quem vai
pagar o prejuízo dos vendedores ambulantes que não puderam sair com suas
guias? Quem vai compensar as baianas, os botecos, os bares, os
restaurantes, as casas noturnas? Quem vai indenizar o comércio fechado e
saqueado? Quem vai pagar a conta pelo transtorno? Quem vai pagar o
custo da mobilização militar deflagrada para manter um mínimo de ordem?
Vejo agora há pouco nos sites da cidade que o grande líder do
“movimento” faz um gesto e diminui a pauta: quer agora apenas a anistia e
o pagamento da GAP-5. Precisava criar o caos para isso?
Ernesto Marques é jornalista.