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quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O crente e o cidadão

Por Mauro Santayana

Qualquer que seja a ideia que façamos de Deus, ou dos deuses, ela se subordina à inteligência e aos sentimentos de cada ser humano. A teologia, tanto nas confissões cristãs, como nas demais manifestações de fé, é uma construção histórica, sob a influência dos poderes terrenos. Foram esses poderes terrenos que levaram os sacerdotes judeus a opor-se a Cristo. O panteísmo patrocinava a liberdade investigadora dos gregos, mas Sócrates foi condenado à cicuta sob a acusação de desobedecer aos deuses e, assim, às leis da cidade. O cristianismo, ao legitimar o poder de Constantino, impôs alguns dogmas que retardaram o desenvolvimento da ciência e mantiveram, durante toda a Idade Média, os pobres submetidos à opressão dos nobres. Em todo esse período, a nobreza, associada à Igreja, alternava a repressão mais violenta com atos de presumida piedade, a fim de manter a estagnação social.

O historiador polonês Bronislaw Geremek, de origem judia convertido ao catolicismo, e com forte presença política em seu país, publicou fascinante estudo sobre o tema, com o título de A piedade e a forca. Quando os pobres se rebelavam, a forca funcionava – quando não se acendiam as fogueiras. Sempre foi assim, mesmo antes que a Igreja Católica se tornasse o centro ocidental do poder. Como se sabe, bem antes que Cristo subisse as trilhas do Calvário, Crassius levantou 6 mil cruzes ao longo da Via Appia e nelas pendurou os prisioneiros remanescentes da rebelião de Spartacus.

Os protestantes não foram diferentes dos católicos na intransigência religiosa, como dos cristãos não se diferenciaram muito os muçulmanos, em alguns momentos de sua história. O confronto entre xiitas e sunitas – pelas mesmas vielas de Bagdá onde hoje continuam matando-se – mostra que cada um faz de Deus o escudo que lhe convém.

Uma das grandes conquistas das repúblicas modernas é a separação entre as religiões e o Estado. O Estado é constituído de cidadãos. O Brasil, que instituiu a República depois de forte conflito político com a Igreja – a chamada Questão Religiosa – não conseguiu impor essa separação de forma satisfatória no sistema oficial de ensino. É tempo que o faça. Recente decisão do Congresso – à raiz de desnecessário acordo com o Vaticano – fortalece a ideia de que o ensino religioso é importante para a formação dos cidadãos. Não é. Seria, por exemplo, se os mestres fossem autorizados a dizer aos alunos católicos como se comportou Torquemada, durante a inquisição espanhola, e os evangélicos se dedicassem a explicar como atuaram Calvino e seus seguidores. A inquisição calvinista foi, em sua área de influência, tão cruel quanto a católica. Lembre-se, também, a noite de São Bartolomeu de 1572, em Paris, com a morte em massa de protestantes – em razão da disputa pelo poder.

A ideia da transcendência do homem, pelo caminho da fé, é inseparável da história universal da espécie. Mas o laicismo dos Estados é uma conquista da razão política, que não pode ser desprezada. O ensino da religião (no fundo, uma catequese) deve ser deixado aos pais e às igrejas. Ao Estado cabe ensinar a ética. Do ponto de vista prático, é impossível atender ao vasto leque das crenças no Brasil de hoje, que vão das diversas seitas evangélicas, cada uma delas pretendendo a hegemonia sobre as outras, ao espiritismo e ao sincretismo afro-cristão. Isso, sem mencionar a crescente adesão ao budismo, ao xintoísmo, e a outras religiões orientais.

Aos próprios religiosos não interessa transformar cada escola em praça de cidadezinha do interior, onde os alto-falantes costumam expressar a ruidosa disputa entre os sacerdotes e os pastores protestantes. A infância deve ser uma estação de paz. As crianças e adolescentes vivem a fase em que a amizade nasce e vínculos afetivos se formam, em muitos casos, pela vida inteira, sem levar em consideração a confissão religiosa familiar. Temos que evitar, a todo custo, que nas escolas se semeiem conflitos religiosos, como os da Irlanda.

O mesmo raciocínio que defende o ensino religioso nas escolas teria que aceitar o ensino do ateísmo. Como a recusa de participação política é uma forma de ação, o ateísmo é também uma afirmação do transcendentalismo materialista, se a tal substantivo podemos juntar tal adjetivo. Não é por acaso que os revolucionários franceses erigiram um templo à deusa Razão, no que foram seguidos mais tarde pelos adeptos do positivismo de Comte, com a tentativa de divinizar a humanidade.

Fonte: JBOnline - Coisas da Política

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