Maior que a alegria de receber o artigo, é a de poder reproduzi-lo, aqui neste blog, com a autorização do autor.
Prefiro nem adiantar o tema para que você tenha a surpresa de descobrir por si só a riqueza da relação vocação e vida dos pobres mortais, num enfoque dos desafios de fé que temos no mundo laico.Abaixo, o artigo na íntegra. Boa Leitura
O chamado a sair do acampamento
Há alguns dias atrás Fernando Lugo tomava posse como novo presidente do Paraguai. No discurso de posse quis lembrar a sua trajetória profundamente comprometida com a causa dos pobres. Eis o trecho do discurso no qual ele se refere a esse seu caminho:
“Neste instante, me parece importante resgatar a paisagem social que me inspirou um dia o caminho do sacerdócio, lá nos alvores de uma Igreja nova, comprometida em calçar as sandálias que caminham junto às tribulações e alegrias de nosso povo. Quando escolhi o exercício pastoral, minha opção preferencial foi por aqueles que a história tem jogado nos marginais cenários da exclusão e da miséria.
Quando encontrei a palavra de Leonardo Boff e de Gustavo Gutiérrez, entre outros, percebi claramente que era essa a Igreja destinada a nutrir de esperança ativa os seres humanos, irmãos sumidos no discurso opressor de tantas ditaduras que marcaram a história de nossa Pátria Americana. Por isso estive ali, por eles estou aqui e, por isso mesmo, este leigo eternamente agradecido com sua Mãe Igreja, permanecerá firme na sua fé solidária até o fim de sua humilde história”.
Admirável a audácia e a coragem deste bispo da Igreja Católica, religioso da Congregação dos Verbitas. Para continuar fiel a sua vocação batismal não teme deixar o exercício do ministério episcopal. Para mentes tacanhas e pouco sintonizadas com a palavra do Evangelho esse homem teria “colocado a mão no arado e olhado para trás”. Teria traído a sua vocação. Isso porque tais mentes ainda raciocinam com os parâmetros medievais em que se imaginava que a vocação ministerial ordenada é a mais importante e superior a todas. Por esse motivo pensava-se que deixar o exercício do ministério ordenado era decair de grau e de grandeza. Era cometer um horrendo crime e um pecado abominável. Ainda hoje existem aqueles que pensam assim e quando alguém deixa o exercício do ministério afirmam que tal pessoa foi “reduzida ao estado laical”! De fato, para essas mentes o “estado laical” é horrendo e ser reduzido a ele é o pior castigo que possa existir.
Mas não há nenhum pecado nisso. A vocação fundamental é aquela batismal, ou seja, o chamado a seguir Jesus Cristo. As vocações específicas são apenas desdobramentos, isto é, formas concretas de assumir o seguimento de Jesus. Elas sempre dependem dos contextos históricos e das possibilidades reais que cada um encontra no seu caminho. Por essa razão elas podem mudar. Assim sendo, uma pessoa casada pode, de repente, deparar-se com uma situação nova e ser chamada a mudar de vocação específica, assumindo o celibato, chegando mesmo a pedir a permissão do cônjuge para fazer isso. Infelizmente pela cultura medieval que se estabeleceu dentro da Igreja Católica Romana, o contrário não é permitido. Um homem casado pode “abandonar” o casamento para se tornar celibatário, mas um celibatário que resolve se casar é considerado um “traidor”, embora o Novo Testamento considere isso a coisa mais natural do mundo (cf. 1Cor 7,28).
Fernando Lugo não traiu a sua vocação cristã, embora não se possa afirmar que os outros seus colegas que não fizeram a mesma coisa sejam traidores. A vocação divina é única e irrepetível. A cada pessoa Deus propõe um caminho e somente o vocacionado ou vocacionada sabe o que é melhor para colocar-se em plena sintonia com os apelos de Deus. Lugo assumiu a vocação batismal de forma diferente, tendo presente o contexto em que se encontrava. Para realizar essa mudança de vida é indispensável ter uma profunda experiência de Deus e ser bastante sensível ao seu chamado. Deixar tudo para seguir o Mestre não é coisa fácil. O mais fácil é agarrar-se ao poder, às pompas e às vantagens que certas formas de vocações eclesiásticas oferecem aos carreiristas de Igreja.
Quando tomou a decisão de deixar o exercício do ministério episcopal para concorrer à presidência do Paraguai, Fernando Lugo afirmou: “De hoje em diante, minha catedral será a nação”. Entendeu que como batizado deveria servir a ekklesía, isto é, à Igreja viva, formada de pessoas concretas, a verdadeira assembléia dos chamados. Assim sendo, ele não pôs a mão no arado e olhou para trás. Pôr a mão no arado e olhar para trás não é assumir uma forma nova de vocação específica. No contexto do Evangelho de Lucas (9,62), onde se encontra tal afirmação de Jesus, é abandonar “a estrada de Jerusalém” (Lc 9,51), ou seja, não aceitar as exigências radicais do seguimento que significa, entre outras coisas, a perseguição e morte, bem como o abandono das seguranças, inclusive aquela que é dada pelo anel episcopal, pelo báculo e pela mitra. Pode então acontecer que alguém nunca deixe uma forma específica de vocação e seja um arador de terra que olha para trás, fugindo do compromisso com a justiça e com a verdade, não querendo assumir as inseguranças típicas da vida de quem segue Jesus de verdade.
O seguimento de Jesus comporta o rompimento dos esquemas eclesiásticos pré-estabelecidos para assumir o destino da grande multidão dos “sumidos”. Inclui a coragem de “sair do recinto sagrado”, o abandono das seguranças que uma vida cômoda dentro da Igreja pode oferecer. O autor da Carta aos Hebreus, olhando para o exemplo de Jesus, nos convida: “Saiamos ao seu encontro fora do acampamento, carregando a sua humilhação” (Hb 13,13). Fernando Lugo ouviu o apelo e teve a coragem de abandonar o acampamento e se expor à humilhação de ser considerado um traidor. Ele se deu conta de que não existe “aqui em baixo morada permanente” (Hb 13,14).
Assumindo a eterna “busca da morada futura” (Hb 13,14), própria da vocação do cristão e da cristã itinerante, preferiu aderir a Jesus, sofrendo “do lado de fora da porta” (Hb 13,12). Oxalá o seu exemplo possa ser seguido por outros cristãos e cristãs, de modo a termos sempre mais pessoas dispostas a abrir mão das vantagens dos “abrigos das tendas eclesiásticas” para se colocarem junto dos que estão acampados fora das portas das cidades neoliberais, jogados “nos marginais cenários da exclusão e da miséria”. Porque uma Igreja que não é mais capaz de ter gente assim, que não é mais capaz de nutrir de esperança ativa os seres humanos, os irmãos sumidos e oprimidos, é uma Igreja que não tem mais sentido. Serve apenas para ser jogada fora e “calcada aos pés pelos homens” (Mt 5,13).
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