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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Quaresma: tempo de reparar as brechas

José Lisboa Moreira de Oliveira

Desde o IV século o cristianismo decidiu fixar o tempo de preparação da Páscoa em torno de 40 dias. Até então esse tempo de preparação era breve, resumido aos três dias conhecidos hoje como Tríduo Pascal (quinta, sexta e sábado santo). O tempo de 40 dias, muito conhecido no Antigo Oriente, tinha um significado simbólico para as pessoas e culturas das civilizações daquela região. Por essa razão ele é mencionado com frequência na Bíblia judaico-cristã. Significava o tempo necessário, suficiente, para que se pudesse realizar uma tarefa e uma missão. Está relacionado ao número quatro, o qual, por sua vez, representava os quatro elementos que segundo a tradição dos povos orientais constituíam a Terra e, de consequência, davam consistência à vida: terra, ar, água e fogo. Portanto, já muito antes da invenção da quaresma, o número 40 representava o tempo oportuno e propício oferecido, ao ser humano e aos povos, pelos deuses para que pudessem cumprir a sua missão.
            Com o passar do tempo, buscando inspiração na Bíblia, o cristianismo foi indicando algumas práticas que pudessem caracterizar o período quaresmal como tempo intenso de reflexão e de convite à conversão permanente. Aos poucos a própria vivência do tempo quaresmal foi evidenciando três práticas fortes e significativas: oração, jejum e esmola. Isso não significava que o exercício dessas três práticas ficaria limitado a esse tempo de 40 dias. Significava apenas que aquele período era uma oportunidade de intensificá-las, de modo que elas pudessem marcar toda a existência cristã. Assim sendo, ainda hoje, a Igreja insiste com os seus fiéis para que, durante a Quaresma, intensifiquem essas práticas.
            Aqui, porém, surge uma pergunta muito importante e fundamental: mas o que é mesmo oração, jejum e esmola? Muitas podem ser as respostas e nem sempre elas estão em sintonia com a Palavra e com a autêntica tradição eclesial. Por essa razão julgo oportuno aprofundar o significado bíblico dessas práticas. Assim podemos evitar exageros e desvios, entrando mais em sintonia com a verdadeira proposta da Igreja.
            A oração, segundo a Bíblia, não é falar com Deus, mas é, pelo contrário, escutar o que Ele tem a dizer. Conhecemos a famosa expressão “shemá Israel”, ou seja, “escuta Israel” (Dt 4,1; 5,1; 6,4; 9,1; 20,3), tantas vezes repetida por Deus a seu povo. Segundo alguns biblistas a oração da escuta é a mais querida por Deus, uma vez que ela coloca o crente e a comunidade numa atitude ativa de disponibilidade para realizar a sua vontade na medida em que ele vai se revelando. A escuta é indispensável porque Deus se revela progressivamente através da Palavra e dos apelos da história. Por isso Paulo afirma que a fé depende da maneira como se escuta a voz de Deus que chega até nós através da mediação do anúncio (Rm 10,18-21).
            De acordo com a Bíblia, oração recheada de gritaria, barulho e falatórios, não condiz com a verdadeira atitude orante. Ela é própria de adoradores de falsos deuses. Como os falsos deuses são dorminhocos, não escutam ninguém, os orantes precisam gritar até ficarem roucos (1Rs 18,26-29). Por isso, afirma ainda a Bíblia, a verdadeira atitude orante é aquela do discípulo que, a cada manhã, abre seu ouvido para escutar os apelos divinos (Is 50,4-5). Nesse sentido, certas orações que vemos por aí, feitas de alaridos e de multiplicação de palavras, correm o risco de serem puro exibicionismo. Não refletem o ensinamento de Jesus, o qual convida a rezar no segredo (Mt 6,5-7). Aliás, como diz a Tradução Ecumênica da Bíblia, a expressão “rezar no segredo do quarto mais retirado” (Mt 6,6) dá a entender que se trata de um lugar inusitado, como, por exemplo, o celeiro. Um lugar onde jamais se imaginaria alguém rezando.
            Mas, continua a Bíblia, Deus não precisa de nossa oração para nos atender, pois ele já sabe do que precisamos, antes mesmo de o pedirmos (Mt 6,8). Por esse motivo pode-se tranqüilamente afirmar que a oração tem como destinatário o próprio ser humano. Rezamos não para mudar a vontade de Deus, mas para transformar a nossa vontade, fazendo com que ela entre em sintonia com o projeto de Deus. Assim sendo, podemos afirmar que a atitude orante da escuta nos ajuda a encontrar formas de “acudir ao enfraquecido” (Is 50,4). Rezamos não para satisfazer a Deus, mas para sermos solidários e para nos tornarmos sensíveis ao grito do fraco, do empobrecido. A oração desconectada da solidariedade e da luta pela justiça é algo que causa náuseas a Deus. Melhor: causa-lhe horror! Ele não escuta esse tipo de reza (Is 1,11-15). Por essa razão, no período da quaresma, a comunidade cristã juntou a oração à prática do jejum e da esmola.
            O jejum, como sabemos, é o gesto de não ingerir alimentos por um certo período ou de consumi-los de forma sóbria, ou seja, na menor quantidade possível. Como a oração, o jejum é uma prática que vem das mais antigas religiões. Porém, no judaísmo e no cristianismo o jejum não é feito para agradar a divindade, mas para despertar na pessoa religiosa a solidariedade para com aqueles e aquelas que estão passando fome. Isso é muito evidente na Bíblia. Deus não suporta o jejum pelo jejum, isto é, o jejum desconectado da prática da justiça. Ele só aceita essa prática quando ela é expressão de solidariedade, quando essa se transforma em ações em vista da libertação de todas as formas de “canga” que oprimem os pobres (Is 58,3-14). Por essa razão a Bíblia denuncia certas formas de jejum, as quais, disfarçadas de religiosidade, servem apenas para acobertar a injustiça contra os pobres (1Rs 21,9). Trata-se do jejum exibicionista e hipócrita (Mt 6,16-19) que não terá mais lugar na comunidade dos que vivem em sintonia com as propostas do Reino (Lc 5,33-35), uma vez que aqui não há mais ninguém com fome. Os pobres foram incluídos no banquete (Lc 14,13.21) e não há mais sentindo ficar jejuando.
            Segundo dados da ONU existem atualmente no mundo mais de um bilhão de famintos! Ora, a prática do jejum bíblico torna a pessoa sensível porque ela experimenta na própria pele aquilo que os famintos da Terra experimentam de forma permanente. Se o jejum for verdadeiro, a pessoa se abre para a partilha, para a solidariedade, e começa a perceber a urgência da redistribuição da riqueza, da renda. De fato, esse é o sentido da terceira prática quaresmal: a esmola. Infelizmente, como nos mostra Adriano Sella no seu livro Ética da Justiça (Paulus, 2003) houve um desvirtuamento do significado da esmola. A partir da Idade Média, para a quase totalidade dos cristãos, ela não passa de um ato assistencialista, um mero paliativo que deixa o pobre na situação de sempre. A Igreja a partir de então não conseguiu manter o ensinamento bíblico e nem mesmo a proposta de São Tomás de Aquino. Na sua famosa obra Suma Teológica Tomás afirma que não devemos ter as coisas terrenas como próprias, mas como bem comum. Ao falar da distinção entre esmola de preceito e esmola de conselho o santo doutor chega a afirmar que se um pobre está passando fome e o rico não cumpre o seu dever de justiça, o pobre tem o direito de tomar do rico o necessário, sem que esse ato seja caracterizado como roubo.
Para a bíblia (Lc 12,33-34; At 2,44-45; 4,32-37) e para a tradição patrística (séculos I-VIII) a esmola significava partilha, “comunicação dos bens”, ou, como dizemos hoje, redistribuição da renda. Esmola é “um modo para devolver aquilo que pertence ao pobre, ou seja, resgatar o equilíbrio originário (a harmonia do cosmo) exigido pela justiça” (Sella, p. 170). Por esse motivo, afirmava São Cipriano de Cartago, a falta de redistribuição de renda é sinal de que a fé e a fortaleza dos cristãos murcharam por completo. Onde não há redistribuição de renda não há cristianismo.
            Dar esmola, portanto, significa agir de modo a deixar bem claro, como o fez São João Crisóstomo, que Deus não fez alguns ricos e outros pobres. Em uma de suas homilias, comentando a Primeira Carta a Timóteo, Crisóstomo afirma que a terra é dom de Deus para todos e os seus frutos têm de ser comum para todos. E conclui sua reflexão perguntando: “Como é possível que você tenha tanta terra e que o teu próximo não tenha nada?” (Homilia a 1Tm, XII,4). Uma pergunta contundente e atual que certamente deixaria qualquer latifundiário profundamente irritado. Não por acaso esse santo foi perseguido, ameaçado de morte e, por diversas vezes, expulso da diocese onde era bispo. A partir dessa perspectiva pode-se afirmar que a esmola, no sentido bíblico, é lutar para que o direito comum prevaleça sobre o direito privado, pois, no dizer de Santo Ambrósio, bispo de Milão, “a natureza engendrou o direito comum e a usurpação fez o direito privado”. De conseqüência, lembrava muito bem São João Crisóstomo, “enquanto houver pobres, o rico é um ladrão e a riqueza é uma injustiça: se uma pessoa é rica, cometeu certamente injustiça”.
            A chegada de mais um período quaresmal é uma oportunidade para revermos nossas práticas e nossa vida cristã, reparando brechas, reconstruindo ruínas e restaurando a vida ameaçada (cf. Is 58,12). É tempo de pensar seriamente na missão que nos foi confiada de fazer da Terra “um jardim irrigado” (Is 58,11). Num momento em que há muito barulho na sociedade e na Igreja, em que nos tornamos surdos aos clamores de bilhões de pobres, urge resgatar o sentido pleno e bíblico da oração. Urge questionar certos grupos de oração que com suas rezas barulhentas não ajudam as pessoas a manterem os ouvidos abertos para ouvir (Is 42,20) e acudir ao enfraquecido (Is 50,4). Urge voltar àquela oração de discípulo que, conectado com as realidades humanas (1Sm 3,1), é capaz de dizer: “Fala Senhor, o teu servo escuta” (1Sm 3,11).
            A quaresma é, sim, o tempo do jejum bíblico. É o tempo de fazer a experiência em nosso próprio corpo da fome que mata diariamente tantos irmãos e irmãs, principalmente crianças. Para muitos de nós, obesos pelo excesso de comida, pelo pecado da gula, doentes por comermos demais, vale a pena, nesse período quaresmal, sentir muita fome. Não por obsessões religiosas, não por questões estéticas, não para obedecer à ditadura da beleza, mas para sentirmos de fato aquilo que sente quem não tem o direito de comer. De fato, como dito antes, este é o jejum que Deus prefere.
            Por fim, o tempo quaresmal é o tempo por excelência para rever o nosso compromisso com a justiça e a solidariedade. É o tempo de abandonarmos aquela mentalidade que nos leva à acomodação. É o tempo de nos conscientizarmos da obrigação de lutarmos contra toda forma de injustiça, fazendo com que sejam iguais e tenham igual sorte todos os que vivem neste mundo. E nesta quaresma de 2010 se apresenta para nós uma excelente oportunidade: a Campanha da Fraternidade Ecumênica que vai trabalhar o tema “Economia e Vida”. Podemos nos engajar em ações concretas que colaborem para que a economia seja orientada por princípios éticos que criem reais condições de vida digna para todas as pessoas. Que tal nos unirmos a tantas outras pessoas que já estão comprometidas com essa luta? Não faltam oportunidades e espaços para quem quer participar.

José Lisboa Moreira de Oliveira, licenciado em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília, graduado em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, Mestre em Teologia pela Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional (Nápoles – Itália), Doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma. Autor de 13 livros e dezenas de artigos sobre o tema da vocação e da animação vocacional. Foi assessor do Setor Vocações e Ministérios da CNBB (1999-2003) e Presidente do Instituto de Pastoral Vocacional (2002-2006). Atualmente é gestor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília, onde também é professor de Antropologia da Religião e Ética.


Fonte: Enviado por e-mail

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