Pesquisar neste blog

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Os demônios descem do norte

Os movimentos autônomos de cunho religioso, notadamente os de cunho pentecostal e neopentecostal surgidos nos EUA desde meados do século XIX até a atualidade, são subprodutos de um capitalismo que necessitava de uma base ideológica para se sustentar em seus desatinos de exploração e criação de subsistemas para alimentar os mecanismos de dominação ideológica e manutenção de poderes da matriz do grande capital - os Estados Unidos.

Na década de 70 praticamente todos os paises da América Latina estavam sob o domínio de sanguinárias ditaduras militares, cuja ideologia de cunho fascista era a resposta política à ameaça da Revolução Cubana que pretendia se expandir para outros países do subcontinente.

Era o tempo da Teologia da Libertação, que, com seu viés ideológico de matriz marxista, contribuiu de forma efetiva para a organização dos trabalhadores e dos camponeses em sindicatos e movimentos agrários que restaram depois na criação do PT e do Movimento dos Sem-Terra (MST).

A ação dessas alas da Igreja Católica era uma ameaça aos planos dos militares voltados para a manutenção dos interesses americanos no Brasil, seguindo a ideologia do capitalismo americano, intervencionista e excludente, que pretendia manter o subcontinente longe das ameaças de Fidel Castro e de sua luta de comunização da América Latina.

Entra em cena a CIA e a facilitação da implantação das seitas eletrônicas americanas em terras latino americanas como uma reação ao “perigo” que representava a Teologia da Libertação e a organização popular que os padres e bispos que seguiam esse movimento teológico promoviam, por meio das CEBs, do sindicalismo e da organização dos trabalhadores rurais.

A resposta americana foi a facilitação e mesmo o financiamento das seitas evangélicas copiadas do modelo americano, forjados pelos pastores eletrônicos que além de manterem multidões alienadas propagavam a ideologia do ocidente cristão contra o demônio do comunismo soviético.

Isso caiu como uma luva nos interesses dos generais brasileiros e vemos aí a expansão das seitas como Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Quadrangular, Renascer em Cristo e outras seitas, nitidamente cópias das similares americanas que buscavam o enriquecimento de seus líderes e a desarticulação de toda a organização popular trazida pela Teologia da Libertação.

Porém, da Teologia da Libertação nasceram o PT (o antigo, ideológico, não-fisiologista), os movimentos camponeses de luta pela terra, as pastorais como a da Criança e várias outras organizações populares que acabaram por derrotar os generais e implantar o Estado de Direito no Brasil. Enquanto as seitas, livres da “missão” de ser freio à expansão “comunista”, enveredaram pelo caminho da corrupção de suas lideranças e pelo enriquecimento ilícito e estelionatário de seus lideres mais famosos.

Portanto, é fácil entender a expansão dessas e de outras seitas evangélicas neopentecostais no Brasil, é fácil perceber que de Deus isso tem muito pouco e tem muito de reprodução do pior do capitalismo, aquele que só sobrevive da exploração financeira das pessoas em detrimento do enriquecimento de uma classe dominante que aqui podemos chamar a Burguesia dos Pastores Eletrônicos às custas da classe operária evangélica, tão ironicamente chamada nessas mesmas igrejas de “obreiros” e “fiéis”.

Você se percebe nesta trama?

Para quem quiser saber mais sobre essa análise conjuntural eu recomendo um livro muito interessante com o título: "Os demônios descem do norte" (foto), adaptação da Tese de Doutorado em Sociologia de Delcio Monteiro de Lima.



quinta-feira, 1 de abril de 2010

Páscoa: a festa da vida e da libertação

O CHAMADO – Nº 44 – 27/03/2010

A celebração da Páscoa como a conhecemos atualmente tem as suas origens em tempos muito remotos. É o resultado da confluência de duas grandes culturas da humanidade: a cultura agrária e a cultura de criadores. Segundo Momolina Marconi no seu livro Prelúdio à história das religiões (Paulus, 2008), há pelo menos uma centena de milênios, no tempo em que não havia nem pás e nem enxadas, os nossos ancestrais eram apenas coletores de folhas e de frutos. Por essa razão a sobrevivência se tornava um verdadeiro drama, especialmente no hemisfério norte onde o inverno era muito rígido e as plantas ficavam desprovidas de folhas e de frutos.
A chegada da primavera significava para esses agrupamentos humanos uma verdadeira festa. As folhas voltavam, as flores brotavam e a esperança de bons e saborosos frutos enchia a todos de muita alegria. Por essa razão os povos daquela época costumavam fazer uma grande festa para oferecer aos deuses, num verdadeiro gesto ritualizado, num cerimonial refinado, as primeiras folhas e, mais tarde, os primeiros frutos. Mais recentemente, no período conhecido por Neolítico, que começa por volta de 10 mil a.C. e se estende até 4.500 anos a.C, o ser humano começa a se fixar na terra. E, além da coleta de vegetais, passa a domesticar e criar animais (cabras e ovelhas) para a sua alimentação.
Ao se fixar na terra ele consolida a agricultura, que no hemisfério norte era formada basicamente do cultivo de trigo e cevada. Neste momento acontece o outro elemento cultural significativo que irá estar na origem da festa da Páscoa. Agricultores e criadores “oferecem as primícias de rebanhos ou de plantações à divindade, a quem, afinal, tudo pertence; a ela são oferecidos o primogênito – inclusive o primogênito humano – e o primeiro maço de espigas: um gesto de simbólico resgate, que deixa o homem livre para consumir o que foi tirado da natureza; e para que o homem não se esqueça – ai dele se isso acontecer! – de que o seu deus é o senhor invisível e temível de tudo” (Marconi, p. 44).
Por volta de 1700 a.C. grupos e tribos nômades da região conhecida então como Canaã, mais tarde Palestina, descem até o rio Nilo e ali se estabelecem aproveitando das águas e das terras férteis das margens do rio para a prática da agricultura e da criação. Mais tarde, por volta do ano 1550 a.C. outros clãs, ligados aos arameus, também fazem a mesma coisa e se estabelecem às margens do rio Nilo. Porém, no século XIII a.C. a XIX Dinastia que reinava no Egito decide a construção das cidades entrepostos conhecidas como Pitom e Ramsés (Êx 1,11), localizadas na parte oriental do delta do Nilo, com a finalidade de enfrentar a ameaça hitita e as revoltas da região de Canaã, que naquele período, estava sob o domínio egípcio. Para a construção utilizou-se da mão-de-obra desses povos nômades que haviam se estabelecido na região fértil do Nilo, submetendo-os a trabalhos forçados, em verdadeiro regime de escravidão (Êx 1,11).
Houve então uma revolta dessas tribos que se recusaram a continuar trabalhando em regime de escravidão. E, por volta do ano 1250 a.C., essa tribos deixam o Egito e voltam à vida nômade vagando por um período na região conhecida como deserto do Sinai, sob a pressão contínua do faraó do Egito (Êx 14,5-20). No período que vai de 1230 a 1220 a.C. essas tribos invadem Canaã pelo sul, eliminam ou expulsam os povos ali residentes (Êx 17,8-13), saqueiam e destroem cidades (Js 6), realizam alianças e colisões com grupos (Js 9–10) e se estabelecem definitivamente na terra, apossando-se dela. Ao se estabelecerem em Canaã as tribos restabelecem a agricultura e a criação de animais e voltam a oferecer à divindade os primeiros frutos da terra (Js 5,10-12).
Esse episódio da saída do Egito até o estabelecimento na terra de Canaã foi sendo narrado oralmente entre as tribos e aos poucos se torna conhecido como a saga do Êxodo liderada por Moisés que, chamado por Deus, guia essas tribos até a “terra prometida”, Mais tarde ele foi codificado na Bíblia judaica.
Com a finalidade de manter a própria unidade, a tradição religiosa das tribos estabelecidas em Canaã, instigadas por suas lideranças, decide por um culto monoteísta em torno do Deus de Israel (Js 24,14-28). Trata-se do mesmo e único Deus que, antes da descida para o Egito, era adorado por essas tribos que se proclamavam descendentes de Abraão, “pai de uma multidão de nações” (Gn 17,5). As tribos fixadas em Canaã, depois da saída do Egito, atribuem à vontade desse Deus o retorno para aquela terra. E usam desse critério para legitimar a invasão das terras e o massacre de tantos povos e para afirmar que esse Deus deu a elas a terra como “propriedade perene” (Gn 17,8).
Em razão disso decidem também relacionar a festa das primícias, celebrada na primeira lua cheia após a chegada das flores (entre final de março e a primeira metade de abril) à saga do Êxodo. E passam a chamar essa festa de Pesach, isto é, passagem, com a finalidade explícita de fazer memorial da saída do Egito. E estabelecem todo um rico ritual para essa celebração (Êx 12,1-27). Portanto, os primórdios da Páscoa remontam à festa das primícias celebrada bem antes da saga do Êxodo. Porém, foi a tradição dessas tribos, mais tarde denominada tradição hebraica ou israelita a dar esse significado de passagem reconhecendo um ato salvífico de Javé que fez o povo passar da escravidão para a libertação (Êx 12,26-27).
Jesus era um hebreu e desde criança celebrava a Páscoa com seus pais (Lc 2,41). Na véspera da sua morte celebra com seus discípulos todo o ritual pascal judaico (Mc 14,12-21). Porém, dá à celebração da ceia pascal hebraica uma dimensão nova. Introduz dentro do rito algo novo, inédito: o memorial de sua entrega pela humanidade (Mt 26,26-29). A partir daquele momento a ceia pascal passaria a ter um significado novo. Baseando-se no gesto de Jesus as primeiras comunidades cristãs passam a celebrar a Páscoa não mais como memorial da libertação do Êxodo, mas como memorial da morte e ressurreição do Senhor (1Cor 11,26). Entendem que em Jesus se dá a Páscoa definitiva, a passagem da morte para a vida, da escravidão para a liberdade. O próprio Jesus é a Páscoa, o próprio cordeiro pascal (1Cor 5,7). Por essa razão a celebração pascal, a ceia pascal cristã, não é apenas memória de algo acontecido, mas memorial, ou seja, atualização no aqui e agora da força libertadora da morte e ressurreição de Jesus.
É possível então concluir que apesar das manchas, como os sacrifícios humanos e os massacres das tribos que voltam para Canaã, a celebração da Páscoa é a celebração da vida e da libertação. Nós primórdios, celebração da vida que brota nos brotos das árvores, nas flores, e nos primeiros frutos. Na Páscoa judaica a celebração da libertação da canga da escravidão. Na Páscoa cristã o memorial da vitória de Jesus sobre a morte, o pecado e a injustiça.
Por essa razão podemos afirmar que não tem sentido celebrar a Páscoa se continuamos na escravidão, se permitimos que a injustiça impere, se permanecemos reféns do pecado. Por essa razão já o apóstolo Paulo convidava os membros das primeiras comunidades cristãs a viverem como pessoas ressuscitadas, rompendo com o “homem velho” para revestir-se do “homem novo” (Cl 3). Tal convite nasce da convicção de que Cristo já fez acontecer em nossas vidas a Páscoa definitiva, ou seja, essa passagem do velho para o novo: “ele nos ressuscitou e nos fez sentar nos céus em Jesus Cristo” (Ef 2,6). A Páscoa é ação já realizada nas nossas vidas pela potência da morte e ressurreição de Jesus. Em Cristo o Pai nos deu a vida e gratuitamente fomos salvos (Ef 2,5). Aliás, aqui está uma outra grande diferença da Páscoa cristã para as outras páscoas: o nosso Deus não exigiu sacrifícios, mas realizou tudo gratuitamente no Filho.
Diante de tudo isso permanece o desafio de celebrarmos a Páscoa de maneira plena, acreditando na força libertadora de Cristo e assumindo uma postura de pessoas ressuscitadas. Permanece o desafio de “fazer morrer” tudo aquilo que nega a Páscoa, a ressurreição, a vida, para abraçar atitudes e sentimentos que geram vida e vida em abundância (Cl 3,5-15). Sim, porque a Páscoa não é um ato mágico realizado por uma fada com sua varinha de condão, mas uma ação divina transformadora que depende da maneira como a acolhemos e vivemos. Haverá Páscoa quando nos dispusermos a cultivar novas relações, cientes de que neste mundo só existe um único Senhor, aquele que está nos céus (Cl 3,18-4,1).
E, infelizmente, ainda estamos muito distante desse espírito pascal. Bastaria um exemplo. Ao estudar o texto de Marconi, mencionado anteriormente, descobri que nos primórdios, muito antes da Páscoa judaica, havia no ritual da oferenda das primícias um lugar todo especial reservado à mulher, inclusive porque se acreditava que “só a mulher pudesse magicamente favorecer novas vidas” (p. 42). Hoje, na Páscoa cristã, a mulher está completamente relegada a um lugar secundário. Uma interpretação machista da Bíblia a colocou na pura e simples condição de dependente do homem, embora Paulo tenha afirmado claramente que na Páscoa de Jesus não há mais lugar para a discriminação da mulher (Gl 3,28-29). As Igrejas cristãs, salvo honrosas exceções, são machistas e discriminantes. As mulheres não ocupam cargos de direção e de poder, mesmo mais recentemente quando houve a "feminilização" das funções presbiterais e os presbitérios se encheram de gays e, tristemente, de pedófilos.
Diante do que vem acontecendo na Igreja, principalmente na Igreja Católica Romana, torna-se urgente resgatar a compreensão da Páscoa como a festa da vida e da libertação. Do contrário, tudo não passará de um teatro de péssima qualidade que as pessoas detestarão cada vez mais. Se a celebração da Páscoa não contribuir para arrancar as máscaras da Igreja só servirá para afastar ainda mais as pessoas dela mesma. De fato, hoje, como diz sabiamente Arturo Paoli, muitos “se afastam indignados de uma Igreja que dá provas de uma falta de sensibilidade tão elementar”. 

José Lisboa Moreira de Oliveira

Fonte: Blog lisboa-ochamado

Acessos