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quarta-feira, 3 de março de 2010

Reflexões éticas sobre o atual momento político

José Lisboa Moreira de Oliveira*

Desde o final do ano passado estamos assistindo a um desfile de escândalos e de corrupção no Distrito Federal. Infelizmente tais escândalos são apenas a ponta de um iceberg. A história do nosso país foi sempre marcada por episódios escabrosos de corrupção. Por estes dias lia um texto de Anita Leocádia Prestes, doutora em História, no qual a autora aborda a questão da “revolta tenentista” ocorrida na década de 1920. Segundo a autora a “revolta dos tenentes” tinha como motivação a luta contra a corrupção que nascia do “voto de cabresto”, do coronelismo, da famosa política do “café com leite”, da “política dos governadores”, que estavam na origem de eleições fraudulentas, visando manter o status quo e a corrupção. O povo nunca é respeitado na sua vontade e na sua dignidade.

Prestes assim se expressa no seu livro: “O sistema oligárquico de dominação, implatado com a República, começava a desmoronar. Os setores dominantes estavam divididos. O monolitismo da ‘política do café com leite’ descontentava a todos. Para as massas populares, tradicionalmente alijadas de qualquer participação na definição dos destinos do país, a atmosfera tornara-se irrespirável. Ninguém agüentava mais a camisa de força do regime político vigente na República Velha” (PRESTES, Anita Leocádia. Uma epopéia brasileira: a Coluna Prestes. São Paulo: Expressão Popular, 2009, pp. 28-29).

Diante de tal situação que se perpetua cabem algumas reflexões éticas. Antes de tudo é preciso dizer que existem enormes brechas em nossas leis, permitindo que políticos corruptos, mesmo depois de ficar comprovado o seu envolvimento em atos de corrupção, continuem no poder ou a ele voltem, como se nada tivesse acontecido. É lamentável que em nosso país certas leis sejam tão rigorosas com o simples “ladrão de galinha”, e tão indulgentes com os “ratos” que metem a mão no dinheiro público que deveria ser destinado para beneficiar o povo, particularmente os mais pobres. Por isso é urgentíssimo modificar tais leis, transformando a corrupção e o desvio de dinheiro público em crimes hediondos, impossibilitando a impunidade e castigando severamente aqueles que se apropriam do que pertence à nação brasileira.

Mas, para que isso aconteça, é indispensável mudar a “cultura política” dos brasileiros. Essa ainda é marcada pela benevolência e pela idolatria dos políticos corruptos. Todos sabemos como muitos dos políticos envolvidos nos últimos escândalos de corrupção, não tinham a “ficha limpa”. Seus crimes eram públicos e notórios. Mesmo assim boa parte da população os elegeu. Isso mostra a falta de consciência crítica e a difusão da corrupção entre as pessoas, as quais deixam se guiar pelo imoral paradoxo do “rouba, mas faz”. É hora de começarmos um trabalho de formação política que responsabilize cada brasileiro por aquilo que acontece. Nenhum brasileiro, diante de evidências graves de corrupção, deve permanecer indiferente e passivo, como se o que acontece não lhe dissesse respeito. Temos que criar a convicção coletiva de que, de certa forma, todos somos responsáveis por essa corrupção. E, se a responsabilidade é coletiva, é hora de agirmos coletivamente, mudando tal cultura.

E, nesse momento, devem entrar em ação as instituições representativas da sociedade, de modo particular aquelas que são responsáveis pela educação. Uma responsabilidade toda especial cabe as religiões, particularmente às Igrejas cristãs, as quais pela sua origem e pela sua natureza, deve cuidar sempre da formação da consciência crítica e da educação política dos cidadãos e das cidadãs. O Texto-Base da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2010 assim se expressa: “O lugar das igrejas é onde Deus está atuando, Cristo está sofrendo e o Espírito está cuidando da vida e resistindo aos principados e poderes destrutivos. As igrejas que se mantiverem distantes desse lugar concreto do Deus Triúno não podem afirmar que são igrejas fiéis” (nº 68).

Infelizmente, a meu ver, nos últimos anos as Igrejas têm se distanciado desse lugar. Não têm resistindo “aos principados e poderes destrutivos”. Nota-se claramente um recuo e um abandono da dimensão sócio-transformadora. Até mesmo a Igreja Católica Apostólica Romana, tão atuante no passado recente, parece ter esquecido por completo essa sua obrigação. Ainda existem vozes isoladas e resistentes, mas, na sua quase totalidade, a Igreja Católica parece ter abandonado de vez o compromisso com os pobres e a libertação. Hoje o que se vê, de um modo geral, são grupos católicos verdadeiramente “alérgicos” ao compromisso social.

No caso do atual escândalo de corrupção no Distrito Federal isso é muito evidente. O silêncio e a omissão das Igrejas é assustador. Não há um posicionamento firme e decidido a esse respeito. Não se ouve, não se escuta, não se percebe as Igrejas se pronunciado com clareza sobre o episódio. Não se vê uma ação de mobilização, não no sentido de acusar e de condenar ninguém, mas no sentido de orientar os fiéis para que acompanhem de perto a situação, exigindo clareza, apuração rigorosa dos fatos e punição exemplar daqueles que comprovadamente forem considerados culpados pelo roubo do dinheiro que pertence ao povo, particularmente os mais pobres.

Pelo contrário, o que se viu esta semana no noticiário da mídia foi a visita de uma autoridade da Igreja Católica ao principal dos acusados, considerado o líder da quadrilha de larápios e que se encontra preso por tentar subornar e corromper testemunhas. Tal atitude, a meu ver, é gravíssima porque passa para a sociedade a idéia de conivência com todo esse escândalo e roubalheira. Certamente a própria autoridade poderia argumentar que lhe cabe o direito e dever de visitar quem está preso, apelando inclusive para a palavra de Jesus. Porém, tal afirmação e tal atitude estão desprovidas de discernimento crítico e de fidelidade ao Evangelho. Ofendem aos pobres, às vítimas desses gatunos.

O verdadeiro líder cristão, a verdadeira autoridade religiosa eclesial, sabe que o próprio Jesus, embora acolhesse a todos, sem exceção, recusou-se terminantemente a encontrar-se com canalhas que exploravam o povo. Conhecemos, por exemplo, o episódio no qual o Mestre deixa claro que não quer conversa com Herodes, a “raposa” que tentava matá-lo por causa da sua ação libertadora (Lc 13,32). Por isso considero gravíssima e escandalosa a atitude de um líder religioso que num momento tão grave como esse se presta à baixeza de misturarse com a lama que escorre solta pelos corredores dos poderes executivo e legislativo do Distrito Federal. Tal atitude pode ser comparada com a “oração da propina” feita por alguns deputados do Distrito Federal agradecendo o roubo que acabavam de realizar. É ofensa a Deus e pronunciamento do seu nome em vão. “E o Senhor não deixa impune quem pronuncia o seu nome em vão” (Êx 20,7).

Creio que neste momento histórico cada um de nós é chamado a refletir seriamente sobre a própria responsabilidade a fim de passarmos a uma prática mais efetiva. De fato, como afirma Bauman, ser pessoa ética “significa que eu sou guarda de meu irmão. Mas também significa que eu sou guarda de meu irmão quer o meu irmão veja, quer não seus próprios deveres fraternos da mesma forma que vejo; e que eu sou guarda do meu irmão não importando o que outros irmãos, reais ou putativos, fazem ou podem fazer” (BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1997, p. 63).

Um cristão, um católico, não pode simplesmente dizer que o que está acontecendo no Distrito Federal não lhe diz respeito. A responsabilidade pela guarda dos demais irmãos, especialmente dos mais pobres, as principais vítimas de todos esses escândalos de corrupção política, é de cada um e de cada uma de nós. Não podemos agir como Caim, o qual, depois de matar o próprio irmão, comporta-se como alguém honesto e correto diante mesmo do próprio Deus, mostrando total indiferença. Não podemos, pois, continuar enganando o próprio Deus. Os que diariamente morrem por falta de comida, por falta de remédios, por falta de hospitais, por falta de saneamento básico, clamam a Deus e pedem justiça. A morte desses inocentes, causada pelas roubalheiras e falcatruas desses corruptos, chega até os céus. E Deus escuta “a voz do sangue” (Gn 4,10) desses irmãos e nos pergunta: “Que fizeste?” (Gn 4,10).

“A força moral das Igrejas – afirma o Texto-Base da Campanha da Fraternidade Ecumênica – precisa estar a serviço de causas sociais importantes e condizentes com o projeto de Deus” (nº 101). Ou será que as Igrejas perderam essa força moral? Será que também elas se corromperam, a ponto de não terem mais “combustível moral” para se colocarem com determinação e força profética diante de fatos escandalosos como esses? “Uma pessoa cristã não pode olhar para o mundo e aceitar que continue a vigorar uma política de sobrevivência somente a serviço dos privilegiados pela riqueza” (Texto-Base CF Ecumênica 2010, nº 103). Por esse motivo estou convencido de que o nosso silêncio e a nossa omissão diante de tais fatos ferem gravemente a nossa identidade cristã e apontam para a existência de um pecado social que brada aos céus.

* José Lisboa Moreira de Oliveira, licenciado em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília, graduado em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, Mestre em Teologia pela Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional (Nápoles – Itália), Doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma. Autor de 13 livros e dezenas de artigos sobre o tema da vocação e da animação vocacional. Foi assessor do Setor Vocações e Ministérios da CNBB (1999-2003) e Presidente do Instituto de Pastoral Vocacional (2002-2006). Atualmente é gestor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília, onde também é professor de Antropologia da Religião e Ética.
 
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