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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Parceria CNJ-CNA: um mau sinal




Parceria CNJ e CNA
Por que um Órgão do Poder Judiciário se presta a este papel?

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) assinaram termo de cooperação técnica (025/10) com dois objetivos aparentemente normais e benéficos a todos: (i) desenvolvimento de ações conjuntas relacionadas ao processo de regularização fundiária no país e o incremento de (ii) medidas previstas no Programa Começar de Novo, que é voltado à inserção de presos e egressos no mercado de trabalho, conforme noticiado no site do próprio CNJ. Leia mais...
Este documento (termo de cooperação técnica 025/10) ainda não está publicado no site do CNJ, pelo menos no link indicado, mas o site Canal do Produtor, vinculado ao CNA-Sinar, disponibiliza mais informações sobre a parceria CNJ-CNA. Assim, além dos objetivos já divulgados pelo CNJ, a notícia publicada no site Canal do Produtor deixa claro que, na verdade, o objetivo principal da parceria é (i) “garantir maior segurança jurídica no julgamento de processos das áreas fundiária e ambiental” e o (ii) fortalecimento do seu programa “Observatório das Inseguranças Jurídicas no Campo” (Clique aqui...)
Pois bem, este “observatório”, segundo o CNA-Sinar, tem como objetivo “mapear ameaças ao direito de propriedade no mundo rural, e mensurar os prejuízos que as invasões de terra causam ao País. Pela iniciativa, será formado um banco de dados sobre situações que prejudiquem o setor agropecuário, principalmente nas áreas fundiária e ambiental. O observatório vai acompanhar o cumprimento das decisões judiciais que envolvam conflitos agrários, reintegração de posse e outras ameaças.” Leia mais...
Eis, portanto, para que serve, em última análise, a parceria firmada entre o Conselho Nacional de Justiça e a Confederação da Agricultura.
Pois bem, cumprindo seu papel, o “observatório” já elaborou estudos sobre os Estados do Mato Grosso, Pará, Maranhão e Bahia, além de tornar público um estudo mais detalhado sobre seus objetivos. Neste estudo, o “observatório” apontou o que entende sobre as questões que geram a insegurança Jurídica no campo: (i) questão fundiária, (ii) questão ambiental (iii) questão quilombola e (iv) questão indígena, ou seja, para o CNA-Sinar, agora com o apoio do Conselho Nacional de Justiça, os excluídos históricos (índios e negros) devem ser, definitivamente, afastados da terra e o meio ambiente não passa de um entrave à suas ambições.
Nesta lógica, finalmente, estão explicadas todas as campanhas de “criminalização” do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e as prisões ilegais de suas lideranças; a violência contra os povos indígenas e as constantes medidas judiciais suspendendo a demarcação de seus territórios; a violência contra os quilombolas e os entraves à demarcação de suas terras e a degradação criminosa do meio ambiente. Clique aqui para baixar o relatório do “observatório”.
A pergunta que não quer se calar é a seguinte: por que o Conselho Nacional de Justiça, como órgão do Poder Judiciário (artigo 92, I-A, da CF), se presta a este papel?
Pois bem, de tudo o que já li sobre o assunto, o texto de Jacques Távora Alfonsin me pareceu o mais lúcido de todos. 



Parceria entre CNJ e CNA: um mau sinal
Por Jacques Távora Alfonsin*

A independência, a autonomia, a imparcialidade, o tratamento igualitário devido a quem comparece em Juízo, conhecido como isonomia no tratamento das partes litigantes, são direitos-deveres dos mais lembrados pelo Poder Judiciário, como garantia do respeito que lhe é devido.
No dia 9 deste fevereiro, um acordo foi assinado pelo presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Ministro Gilmar Mendes (o mesmo que preside o Supremo Tribunal Federal), com a Confederação Nacional de Agricultura (CNA), que desrespeita, flagrantemente, as obrigações públicas derivadas daqueles direitos-deveres.
Segundo se pode ler nos sites de entidades ligadas à CNA, o tal acordo compreende, entre outras coisas, o seguinte: O Observatório das Inseguranças Jurídicas no Campo faz parte do Núcleo de Pesquisas Estratégicas do Instituto CNA e será responsável pelo mapeamento das chamadas "ameaças ao direito de propriedade". As informações, que serão fornecidas pelas federações da Agricultura nos estados e pelos sindicatos do segmento nos municípios, serão consolidadas pela CNA e estarão disponíveis aos órgãos do Judiciário e do Executivo. A idéia é que, a partir dessa rede de informações, o governo e a sociedade tomem conhecimento das iniciativas que coloquem em risco o desenvolvimento econômico e social do país, como as invasões de propriedades públicas e particulares. Os dados compilados pelo Observatório serão divulgados na página da CNA na internet: www.canaldoprodutor.com.br
A partir de agora, então, ao poder de polícia do Estado, ao Ministério Público, e ao próprio Poder Judiciário como um todo, soma-se um outro poder, delegado a uma entidade privada - o de dedurar quantas pessoas ela julga suspeitas de provocar insegurança. Estabeleceu-se uma espécie de "disque denúncia" à disposição de quem quiser preservar a injustiça social que uma entidade patronal, historicamente inimiga das/os agricultoras/es sem terra e da reforma agrária, poder fornecer-lhe os dados capazes de montar um novo panóptico privado que, a seu juízo, criminalize quantas/os a sua idéia estreita, interesseira e preconceituosa de direito e justiça entenda de criminalizar.
Se tudo parasse por aí, o escândalo já seria muito grave, pelo menos para quem respeite de forma efetiva (e não apenas formal e aparentemente) os princípios constitucionais próprios das obrigações públicas acima lembradas. A situação criada pelo tal acordo, entretanto, é muito pior. A CNA é parte litigante, diretamente interessada em ações judiciais atualmente tramitando no Supremo Tribunal Federal, envolvendo interesses públicos relevantes, relacionados, por exemplo, ao Direito do Trabalho e sindical, ao Direito Tributário, ao meio-ambiente e a terras indígenas.
Quem acessa o site do Supremo se surpreende com o número de tais ações, que sobe a centenas, envolvendo interesses difusos, direitos humanos fundamentais de populações inteiras, valores econômicos significativos.
Será que, mesmo sob tal circunstância, o Presidente do Supremo, simultaneamente o mesmo do CNJ, poderia assinar o tal acordo com uma parte que litiga sob sua própria jurisdição? Ficam preservados, depois disso, a independência, a autonomia, a imparcialidade, o tratamento isonômico das partes, o próprio dever de moralidade que a Constituição impõe ao Poder Público, no seu artigo 37?
Sem necessidade de se lembrar o que a Constituição Federal prevê, sobre o CNJ (art. 103-B, parágrafo 4º, inciso I de modo particular), e a lei Orgânica da Magistratura, sobre a conduta das/os juizas/es, basta a leitura do Código de Ética dessas autoridades para que as/os nossas/os próprias/os leitoras/es dêm resposta a tais perguntas.
Já no primeiro artigo desse Código, prevê-se o seguinte: O exercício da magistratura exige conduta compatível com os preceitos deste Código e do Estatuto da Magistratura, norteando-se pelos princípios da independência, da imparcialidade, do conhecimento e capacitação, da cortesia, da transparência, do segredo profissional, da prudência, da diligência, da integridade profissional e pessoal, da dignidade, da honra e do decoro.
Sobre independência, o art. 5º prevê: Impõe-se ao magistrado pautar-se no desempenho de suas atividades sem receber indevidas influências externas e estranhas à justa convicção que deve formar para a solução dos casos que lhe sejam submetidos.
Sobre imparcialidade, o art. 8º determina: O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito.
À luz do nosso ordenamento jurídico-ético, assim, é impossível afastar-se a conclusão de que o tal acordo escandaliza de maneira profunda a consciência de qualquer brasileira/o, especialmente pelo fato de ter sido assinado pela mesma pessoa que preside o Supremo Tribunal do país. Reconhece ele numa das partes litigantes perante aquele Tribunal, a portadora de um critério idôneo sobre o que se possa entender por segurança jurídica, ainda mais envolvendo um direito como o de propriedade da terra que, por um capítulo inteiro da Constituição Federal (o que trata da reforma agrária, por exemplo) está sob suspeita de ele mesmo ser o gerador da maior insegurança e infelicidade do povo pobre do país..
De que segurança, mesmo, o STF vai tratar a partir de agora, quando a CNA estiver litigando perante esse Tribunal? Não a pública, aquela que é de todas/os, é bom que se suspeite e frise, mas sim a das/os suas/seus associadas/os, já que ela ganhou status de juíza do que seja segurança.
Quando as/s pobres do Brasil reclamam das sentenças judiciais que já partem do preconceito de elas/es serem criminosas/os não faltam vozes estridentes de contestação. O acordo do CNJ com a CNA, porém, é uma prova eloqüente da verdade que embasa aquela queixa.
A própria época em que o tal compromisso foi assinado chama a atenção para o fato. Há um Plano Nacional de Direitos Humanos recentemente lançado que questiona, justamente, as repetidas violências das execuções judiciais infligidas contra multidões de sem-terra e de sem-teto, que sofrem, não raro, a perda da própria vida nesses embates. O Plano, inspirado em modernas teorias processuais, oferece alternativa que, se for transformada em lei, certamente vai diminuir, talvez eliminar essa mortandade vergonhosa, sem ferir o direito de quem quer que seja.
O compromisso assinado entre os dois Conselhos, então, é sinal de que há uma clara opção de classe público-privada contrária ao tal Plano, visando empoderar, exatamente, as forças políticas contrárias à sua implementação. É um acordo, portanto, manifestamente inconstitucional. Não obstante, foi assinado pelo presidente do Tribunal brasileiro encarregado, justamente, de dizer o que seja ou não constitucional...
O país tem suportado uma injustiça social incompatível com um Estado que, em sua Constituição pelo menos, proclama-se democrático de direito. O CNJ e a CNA ignoram esse caráter, desprezam o poder soberano e constituinte do povo, preservam o que há de pior na cultura jurídica classista que predomina na interpretação das leis, e, em nome da segurança das/os latifundiárias/os, mantém a nossa terra escrava delas/es.

*Jurista e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado.
 
Texto publicado no site do MST.

Fonte deste blog: Gerivaldo Neiva

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